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RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Simples

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São tão simples estas minhas palavras
Como são os versos que vos deixo
Como água que corre nas levadas
Como pedra que um dia já foi seixo.

São tão simples como roseiras bravas
Ou como quadra escrita por Aleixo,
A canção de amor que me cantavas,
Árvore de sombra que já foi freixo.

São bem simples as coisas de que gosto,
Tal como noite de luar de Agosto,
Como flor germinando deste chão.

Como beijo roubado por amor
A mão presa na minha com fervor,
Sentir desordenado o coração.



Alcina Viegas
(Tavira)

Arte - Clara Andrade

Acrobacias

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Não premedito não previno não guardo
para o Inverno
não invisto o prazer
em coisa útil: cordão de ouro para vender
numa aflição
não vivo acautelada
com camisa de Vénus
não me retiro
antes do fim.
No meu jogo
arrisca-se tudo:
o fio reteso sabe o peso
do meu corpo em equilíbrio
os pés avançam
lépidos
o medo formiga-lhes nas plantas
dá-lhes asas
Ah! Incorporar o abismo
nas entranhas!
Merecer o próprio corpo
ganhá-lo no salto voado do trapézio:
Agarrar no preciso momento inadiável
as mão do par
no ar

Teresa Rita Lopes
(Faro, 1937)

Fotografia - Laura Azevedo
(Faro)

 

Enseada

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Sei de uma enseada
onde terminam as vagas
que se formam dia-a-dia
ao largo de um oceano suspenso
entre o céu e a cidade.

Imenso o mar voraz
vem dar à ria
e ao longe rebenta
um trovão.

A paixão é uma tormenta,
é tempestade
Mas a certeza de amar
dá-me paz.

Conheço bem esse lugar
de abrigo
onde aportam as ondas cansadas
do final da tarde.

É um querer antigo
que se desfaz
e se refaz de novo
como por magia.

Tal como as ondas maradas
se renovam e se desfazem
no recovo
que apenas se descobre na maré vazia.
 

Euridice Cristo
(Olhão)

Fotografia de Jorge Manso (Algarve)

 

Em Lagos

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Virada para o mar como a outra Lagos
Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor:
A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza
É uma arte poética e uma forma de honestidade
Acorda em mim a nostalgia de um projecto
Racional limpo e poético

Os ditadores – é sabido – não olham para os mapas
Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões
O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos
Jovens corpos mortos ao longo das extensões

Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil
Aceitar o confuso o disforme a ocultação

Na nitidez de Lagos onde o visível
Tem o recorte simples e claro de um projeto
O meu amor da geometria e do concreto
Rejeita o balofo oco da degradação

Na luz de Lagos matinal e aberta
Na praça quadrada tão concisa e grega
Na brancura da cal tão veemente e direta
O meu país se invoca e se projeta

Lagos, 20 de abril de 1974
Sophia de Mello Breyner Andresen, no livro " O nome das coisas"

Fotografia de Lagos (retirada do Google)

Ó minha terra...

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Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar,
Onde tenho o meu pão e a minha casa.

Florbela Espanca
(Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894)

Fotografia - Vila Viçosa (retirada do Google)
 

Cumpra-se plena em ti, a felicidade

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Cumpra-se plena em ti, a felicidade
promessa de futuro no meu presente,
que sendo leite e mel na tua idade
se espelha em mim, tão diferente.

Nesse vendaval que por mim rompeu,
com um mar de ternura me derrubaste
e foi em meiga maresia que assim cresceu
o doce fruto, que cedo em mim plantaste.

Mas se o mesmo mar, também destrói
cerce a ilusão que no peito foi tecida,
vem esta dor que não doendo me dói
imenso no corpo e muito mais na vida.

Sejas tu, a sempre eterna miragem,
cúmplice dos sonhos em que me perdi,
vento, vela, veleiro e mar desta viagem
de ternura, que começou e acaba aqui.

Miguel Afonso Andersen, no livro "Circum - Navegações" (Raiz perturbada)
(Ferrafudo\ Portimão)

Fotografia de Jorge Manso
(Faro)

 

Menina estás à janela

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Menina estás à janela
com o teu cabelo à lua
não me vou daqui embora
sem levar uma prenda tua

Sem levar uma prenda tua
sem levar uma prenda dela
com o teu cabelo à lua
menina estás à janela

Os olhos requerem olhos
e os corações corações
e os meus requerem os teus
em todas as ocasiões

Menina estás à janela
com o teu cabelo à lua
não me vou daqui embora
sem levar uma prenda tua

Sem levar uma prenda tua
sem levar uma prenda dela
com o teu cabelo à lua
menina estás à janela



Vitorino Salomé

Fotografia - Janela alentejana com vasos (peça artesanal), retirada do Google

Vede agora a planura alentejana

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Vede agora a planura alentejana,
Duma argila vermelha,
Amassada em suor de trágicos ceifeiros.
Este barro, esta carne em sangue da paisagem
Parece gangrená-la a chaga do sol-posto,
Que fica sobre a linha escura do horizonte,
Por essa noite adiante.
Vagam através dela aparições curiosas
De mouros a cavalo;
E a sua manta regional, garrida,
Espalhando no ar as tintas inflamadas.
De longe a longe, um denegrido cume
Põe, em alto relevo, o drama das charnecas...


Teixeira de Pascoaes

Fotografia - Ricardo Zambujo Photography
 

Desporto e Pedagogia

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I

Diz ele que não sei ler
Isso que tem? Cá na aldeia
Não se arranjam dúzia e meia
Que saibam ler e escrever.

II

P'ra escolas não há bairrismo,
Não há amor nem dinheiro.
Por quê? Porque estão primeiro
O Futebol e o Ciclismo!

III

Desporto e pedagogia
Se os juntassem, como irmãos,
Esse conjunto daria,
Verdadeiros cidadãos!
Assim, sem darem as mãos,
O que um faz, outro atrofia.

IV

Da educação desportiva,
Que nos prepara p'ra vida,
Fizeram luta renhida
Sem nada de educativa.

V

E o povo, espectador em altos gritos,
Provoca, gesticula, a direito e torto,
Crendo assim defender seus favoritos
Sem lhe importar saber o que é desporto.

VI

Interessa é ganhar de qualquer maneira.
Enquanto em campo o dever se atropela,
Faz-se outro jogo lá na bilheiteira,
Que enche os bolsinhos aos que vivem dela.

VII

Convém manter o Zé bem distraído
Enquanto ele se entrega à diversão,
Não pode ver por quantos é comido
E nem se importa que o comam, ou não.

VIII

E assim os ratos vão roendo o queijo
E o Zé, sem ver que é palerma, que é bruto,
De vez em quando solta o seu bocejo,
Sem ter p'ra ceia nem pão, nem conduto.


António Aleixo, em "Este Livro que Vos Deixo..."
(Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949)

Fotografia de Pedro Cabeçadas

 

Tu ensinaste-me...

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Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justas

E fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.

O amor substitui
o Sol — que tudo ilumina.

Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.

Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonha

Vês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua alma

Por que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?

Raúl de Carvalho, em “Obras de Raul de Carvalho”
(Alvito, Baixo Alentejo, 4 de setembro de 1920 - 3 de Setembro de 1984)

Arte - Mariana Valente
(Serpa)

 

Corridinho

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Na eira da tia Anica
Anda tudo em alvoroço!
Parado é que ninguém fica,
Seja velho ou seja moço...

Nunca mais acaba a "moda"
Tocada em "fole" e "ferrinhos",
E os pares giram à roda,
À roda,
À roda,
Aos pulinhos!

Parece que os pés têm asas,
Não há tréguas nem canseiras.
E, à luz do luar, são brasa
Os olhos das montanheiras!

Ai que moças! Entontece
A gente olhá-las!
Apetece
Abraçá-las,
Apertá-las
Com jeitinho,
E levá-las
De faces afogueadas,
As ancas em requebradas
Nas voltas dum corridinho!

Eis que, à voz dum mandador
Cessa a barulheira toda;
Têm que os pares se dispor
P´ra formar a grande roda.

«Atenção! Vai começar!»
(Fica tudo em prevenção)
«De roda! Vá de rodar!,
Cada qual com o seu par,
E não haja confusão!...»

«Puladinho quero ver!»

«Meia volta, e troca o par»

«Puladinho, puladinho,
tudo certo
sem parar!»

João Braz, em "Esta Riqueza Que o Senhor Me Deu..."
(S. Brás de Alportel-13 de março de 1912 \ Portimão - 22 de junho de 1993)

Fotografia - "Corridinho Algarvio"

 

Ginga… ginga…

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Crescem-me cerzidas à pronúncia dos lábios
tão súbitas como antigas, as palavras
rumorejantes num rodopio de sons ribeirinhos
salpicados na dicção mais do que imperfeita da memória.

Adriças lexicais espicaçadas pela curiosidade
cravadas na semântica esdrúxula da história.

Lancha, bote e chata
na vela de pano cru, no remo e na remada
já com a âncora então fateixa a ser içada.

Proa e popa. Bombordo e estibordo. Borda fora.
O barco a fazer água na evidencia dos paneiros
numa vida sem vertedor porque batedor
era o seu nome outrora.

Ginga… ginga…
a gíria gira da marcha à ré dos sem motor.
Só remo, quilha, leme
e o estralho que na xema da vida de dor
clama e geme.

Murejona, marejona, cofre, covo e alcatruz.
Lingueirão, lagueirão que era isco
Bergão, petit-nom de berbigão que é petisco.
Petromax de uma só camisa e tanta luz.
Camaroeiro, seda, sedela e braças d’água.
Chumbada, girador e anzol sem peixe
saltitando hipotético no chalavar da mágoa.

Miguel Afonso Andersen
(Ferragudo - Portimão)

Fotografia de Ferragudo por Nuno Trindade Photography

Quem me vê...

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Quem me vê dirá: não presta,
nem mesmo quando lhe fale,
porque ninguém traz na testa
o selo de quanto vale.

António Aleixo
(Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949)

Arte - pintura de António Aleixo
 

Quem escreve

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Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.

António Ramos Rosa, "Acordes", QUETZAL EDITORES, 1990

Sempre!

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Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a doce
E bela imagem tua, que eu quisera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!
Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeléveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!.. Sigo-te os passos!..
Vejo-te sempre! Trago-te comigo!

João de Deus, em "Ramo de Flores"

Fotografia - mulher algarvia (retirada do Google)

O meu coração

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Meu coração
escreve a beleza da vida...
Em cada flor que nasce,
em cada boca
e em cada beijo
exalta o amor que renasce.
Certas vezes acontece
entoar doces canções,
outras vezes estremece
com o bater de corações.
Mas...
de repente a tristeza
chega sem ser esperada,
aproveita para entrar
mesmo sem ser convidada.
Meu coração enlouquece
com tamanha alteração,
sem saber se tem a Lua
ou o Sol na sua mão.


Mª da Graça Dordio Dimas * Excerto do inédito "O meu coração"
(Olhão)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

 

Deixei contigo o meu amor

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Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
e o da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.

Nuno Júdice, em "O Estado dos Campos" (Dom Quixote, 2003)
29 de abril de 1949 - Mexilhoeira Grande

Fotografia - Isaura Almeida
(Faro)

À porta, uma "parrêra"...

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À porta, uma "parrêra"
Semeada no "alegrête"
À "roda" dela, uma abelha
"Todó dia" num " sansonête"

Às portas alentejanas
Quem não tinha uma "parrêra"?
Com abelhas feitas "maganas"
Comendo as uvas, "ai que cansêra"

Ó Manel " ensaca" as uvas
Diz a Maria, cruzando os braços
Qualquer dia queres uma
Só encontras os "engaços"

Abelha mais atrevida
Não pode ser "trilhada"
Pica, até deixar em ferida
Os dedos, e a mão inchada

Dá cada " ferroada"
Nã tá pra "brincadêra"
Mas que ideia ver plantada
À porta, uma "parrêra"

M. Medeiros
(Mértola)

Fotografia - Mértola por - Ricardo Zambujo Photography

 

É isso

 

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Frágeis farripas de vento
sem textura e o hálito duma brisa.
Apenas e só uma aragem.

Um ténue e branco rumor
na serena aprendizagem
do silêncio.

É isso o que eu sou
(ou gostaria de ser).

Uma aragem leve e fina
que passa
e toca na pele sensível das coisas.

Uma aragem discreta e limpa
que quase despercebida
passa e roça as margens da vida

Miguel Afonso Andersen, em "Tríptico de Vozes" (Pássaro Suspenso)
(Ferragudo\ Portimão)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)
 

Eu sou

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Eu sou cavalo perdido
Que vai galopando absorto,
Filho da dor, sou gemido,
Perdido num mar revolto.

Eu sou alguém que morreu
Cansado de tanto esp’rar,
Eu sou tudo menos eu
Quando me quero encontrar.

Eu sou águia, sou falcão,
Andorinha no beiral,
Amor, loucura, paixão,
Um poeta de Portugal.

Eu sou o eco ferido,
O pranto que alguém chorou,
Sou alguém que tem sofrido
Por tudo isto que eu sou.

Eu sou semente perdida,
Que germinou e secou,
Onde a vida não é vida
Porque a vida não vingou.

Sou filho do Sol brilhante,
Sou irmão da Lua cheia,
Sou uma estrela distante
Que cintilante, burlei-a.

Abílio Ferradeira de Brito
(Faro)

Fotografia de Quarteira por Pedro Cabeçadas
(Faro)

 

Soneto de Verão


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As palavras dançam na minha cabeça,
tal como as ondas vêm e vão
Umas enformam, outras não
tão logo eu as diga e as esqueça.

Palavras, palavras soltas,
perdidas, sem eira nem beira
são como as vagas revoltas
quando se perdem na areia.

Reajo. Seria um desperdício não usar
numa qualquer composição
o som das ondas do mar.

O som das ondas que vêm e vão
como uma canção de embalar
ou um simples soneto de Verão.

Euridice Cristo
(Olhão)

Fotografia - Praia do Castelejo (Vila do Bispo), de Eurídice Cristo

 

Verde!

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O meu coração é verde....
Nele mora,
o verde das oliveiras
que namora
o verde das laranjeiras
ali mesmo junto à casa!.
Perfumam toda a entrada
onde vive pendurada
a videira verde clara
que esconde, camuflada,
uva branca esverdeada...
Da açoteia, de verde caiada
vou de longe espreitar
as sapeiras da Formosa
da minha ria,
algarvia,
sempre de verde enfeitada!
E o meu mar, oh o meu mar...
onde me deixo embalar,
é verde, feito paixão,
a cor do meu coração!


Alcina Viegas
(Tavira)

 

Esfinge

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Sou filha da charneca erma e selvagem.
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d'oiro, p'los caminhos,
Desta minh'alma ardente são a imagem.

Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade...

E à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar...
Esfinge olhando a planície enorme...

Florbela Espanca, em "O livro de Sóror Saudade" (1923)
(Vila Viçosa, a 8 de dezembro de 1894)

Arte - Pedro-Buisel - Alentejo

Cal ou Sal

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A montante e a jusante
Deste lugar no leito do rio
A água é a mesma
Correndo
Parando
Acidentalmente
Como o chão que nos oferece
Os relevos do corpo
Até que seja
Cal nas margens
Até que seja
Sal na foz

Fernando Reis Luís, do livro "Marés & Maresias"
 

Astro Rei

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Só sei viver de frente para o sol
E abrir caminhos para a voz
Aqui nas veredas da serra

Só sei seguir os quadrantes
Para chegar a novas madrugadas
Tentando esquecer as noites

Cavalgo os pesadelos
E na manhã voltarei
Para ser como o girassol

Fernando Reis Luís, em "Nos Socalcos da Serra"

Fotografia da Ria Formosa por Pedro Cabeçadas
(Faro)

 

Há tempos que não sinto ...

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Há tempos que não sinto o sangue pelas veias,
O latejar do espanto pelos versos desavindos
Nem, pela voz, registos dos timbres, dos mais lindos
Com que, poesia, a alma submissa me encandeias.
Há muito que não moro nesse castelo altivo,
Na barbacã dourada, vizinha dos barrancos
Nem ouço, dos riachos, suspiros dos mais francos...
Há tempos que aparento mas, afinal, não vivo.
Há tempos não sentia, tal como sinto agora,
A lassidão dos versos... pela horas moribundas.
Eu penso- te, poesia, e ao chegar inundas
Meu peito de alegria como quem, rindo, chora.

Manuel Neto dos Santos, em "PASSIONÁRIO" (a publicar)
(Alcantarilha)

Fotografia de Pedro Cabeçadas (porta da cidade velha em Faro)

 

Cantigas de um Marinheiro Algarvio

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Eu nasci lá no mais alto
Das serranias em flor,
Lá onde o céu tem a cor
Luminosa do cobalto!

Mas tive de abandonar
A minha aldeia na serra,
Porque eu só gosto de terra
Que fique à beira do mar.

Sinto orgulho em ser serrano,
Mas minh´alma de algarvio
Não resiste ao desafio
Que lhe faz o oceano...

Viva em terra quem quiser
À sua enxada agarrado,
Que eu, por mim, só embalado
Pelas ondas, sei viver!

João Braz, em "Esta Riqueza Que o Senhor Me Deu..."
(S. Brás de Alportel-13 de março de 1912 \ Portimão - 22 de junho de 1993)

Fotografa - Praia da Rocha por Filipe Santos

 

Que teu corpo se faça mar...

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Que teu corpo se faça mar.
num rosário de ondas, uma a uma
para que nelas possa eu afagar
os flancos húmidos da espuma.

Que roles na praia em perfeito desalinho
deixando a marca dos seios na areia
como itinerário e caminho
por onde meu desejo de ti vagueia.

Miguel Afonso Andersen, em "Circum-Navegações" (Ínfimos rumores, íntimos odores)
(Ferragudo\Portimão)

Fotografia da praia de Faro por Isaura Almeida

Alentejo, debruado a Arraiolos

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Na dourada planície alentejana
Onde o sol penetra e em tudo teima
A falta de água mísera e insana
Quebra a vontade abate e queima

Nessa imensa e dourada pradaria
O vento de suão seca a cortiça
Leva consigo, numa lenta agonia,
O suor, a que chamam de preguiça.

Mas o Alentejo é belo e majestoso
Quem o ama chama-lhe de formoso
Quem parte volta, nunca diz adeus

Por isso há sempre vozes em coro
Canto alentejano em vez de choro
A alma alentejana tem força de Deus

Rogério Martins Simões

Fotografia - Alentejo por João P. Santos

Despertar

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Abre-se o chão em luz cor e magia,
inunda de perfume e alegria
a terra mãe que ainda adormecia…
Anda festa no ar
com o lindo chilrear
da passarada
alvoraçada.
As árvores voltaram a florir….
É o ressurgir de vidas
em cada descobrir
de imagens já vividas.
É um ode ao amor,
poema repetido
em cada amanhecer.
É respirar , viver
um sonho acontecido!
E voltar a sonhar,
toda a terra a vibrar
por voltar a ser quem era,
porque em cada despertar
é sempre Primavera…

Alcina Viegas
(Tavira)

Arte - Tavira por OLAVO CAVACO_Art

 

Se eu pudesse..

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Se eu pudesse dizer tudo o que sinto,
se eu pudesse fazer tudo o que sonho,
se eu pudesse ser eu como me julgo,
se eu pudesse ser eu sem me embuçar...

Se eu pudesse afirmar tudo o que penso,
se ninguém me impedisse do que quero,
se pudesse obter o que desejo,
se pudesse esperar tudo o que espero...

Se eu pudesse ajudar a quem me ajuda,
se eu pudesse viver, mas sem pensar
que me devo a deveres de compromisso...

Se eu pudesse ser só o que me sonho,
talvez fosse feliz, talvez não fosse,
já que a vida afinal não passa disso.



Joaquim Magalhães, em “Pretérito Imperfeito”
(Porto a 3 de maio de 1909\Faro, 16 de outubro de 1999)

 

Arte - Clara Andrade
(Portimão)

 

Como um sol...

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Como um sol, serena como um voo...
Toda a minha tristeza se embala num regaço;
Verdade das verdades pois que não sei quem sou
Mentira das mentiras; pois que não sei que o faço.
Soberba, como a luz, tristonha como o pranto,
Toda a minha alegria oscila num batel.
Ó fingidor de mim, actor de outro papel.
Ó confessor da alma que, no silêncio, canto.
Soberba, como a terra que, ao Sul, se espraia ao mar,
Dramática tragédia de não saber de mim...
Onde termina o oceano, onde é, da terra, o fim...
Que tudo existe, em mim, em mim, no meu olhar.

Manuel Neto dos Santos, em "PASSIONÁRIO" (a publicar)
(Alcantarilha)

Fotografia - Vitor Pina - Alvor\ Portimão

 

Para Sophia

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Lua branca da madrugada
pousaste teu cinto na terra
e o mar te veio buscar.

Já lá estavas, de lá enviaste
as palavras que um tempo
fora do tempo te tinha dado
e nós à espera desse momento
alado, em que as tuas letras transformassem
linhas pretas num campo iluminado.

Agora estás lá dentro, agora desde que a lua
e o mar se unem e fazem as marés
mas só alguns o sabem, tu soubeste e
nisso és.

Voltaste à terra branca, e na cidade
um sino bate a hora como se o dia
de hoje apagasse um foco incendiário.

Teu fogo porém vivo, é de outra chama
e a cama onde te deitas, doutra cambraia
e a praia onde te banhas, de outra
água.


Lídia Jorge
(Loulé, Boliqueime, 18 de junho de 1946)

Fotografia - Pedro Cabeçadas

(Faro)

Utopia

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Na brancura da cal o traço azul
Alentejo é a última utopia.

Todas as aves partem para o sul
todas as aves: como a poesia.


Manuel Alegre, em "Alentejo e Ninguém", 1996

Arte - Alentejo por Pedro Buisel

 

A vida

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A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;

A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura num momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida – pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!

João de Deus
(São Bartolomeu de Messines- 8 de março de 1830\ Lisboa -11 de janeiro 1896)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

 

Meio-dia

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Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia - Praia de Faro por Isaura Almeida

Amanhã

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Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:

assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.

Nuno Júdice
(29 de abril de 1949 , Mexilhoeira Grande)

Arte - Carlos José Fonseca Martins, pintor, gravador, escultor, ceramista. (Tavira ,1949)