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RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Anoitecer



A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

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Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!
Como eu sou pequenina e tão dolente
No amargo infinito desta hora!

.
Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!

.
E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

.
Florbela Espanca, no "Livro de Sóror Saudade"

Fotografia - Portalegre - Entardecer.. Alentejo, por Vítor Laranjeiro Photography

Agora vou partir

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Agora vou partir rente à raiz das águas
Onde as giestas ferem de oiro o céu
.
tão longe
.
As oliveiras enrolam nos galhos
lendas em sílabas
cansadas e dolentes
Dentro da casa crepita a lenha
e o vinho de medronho estremece a calma.
.
Cinzelada e tensa
No dorso das fragas
grava-se a promessa

.
Maria Jorgete Teixeira

Fotografia - Alentejo por Vitor Pina

 

Correspondência ao Mar

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Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,

E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.

Vitorino Nemésio, "O Bicho Harmonioso", Coimbra, Revista de Portugal, 1938

Fotografia - Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina em Aljezur por Filipe Santos

Não te encostes à parreira

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Não te encostes à parreira
Que a parreira larga pó
Encosta-te à minha beira
Sou solteiro e durmo só

[Refrão]
Ai, agora é que m’eu maneio
É que m’eu maneio
É que m’eu rebolo
Nos braços do meu amor
Ai, agora é que m’eu consolo

Eu venho dali debaixo
De regar o laranjal
Inda aqui trago uma folha
No laço do avental

Esta roda está parada
Por falta de mandador
Siga a roda p’ra diante
Quem manda é o meu amor


Canção Popular do Algarve

O mar enrola na areia

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O mar enrola na areia
ninguém sabe o que ele diz
bate na areia e desmaia
porque se sente feliz

o mar também é casado
o mar também tem mulher
é casado com areia
pode ve-la quando quer

o mar também é casado
o mar também tem filhinhos
e casado com areia
e seus filhos são os peixinhos

ó mar tú és um leão
a todos queres comer
não sei como os homens podem
as tuas ondas vencer

ó mar que não te derretes
navios qua não te partes
oó mar que não cumpristes
o que comigo trataste

ouvi cantar a sereia
no meio daquele mar
tantos navios se perdem
ao som daquele cantar

até o peixe do mar
depenica na baleia
nunca vi homem solteiro
procurar a mulher feia

Cantiga Popular

Fotografia - Albufeira por Vitor Pina

— com Vitor Pina - Photography.

Ouro e Prata

 

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A flor amarela
era a da urze?
E a de prata
a da giesta?

Pouca coisa são as palavras
e é o que me resta,
o seu ouro derramado
sobre as lembranças:

a palavra urze, a palavra giesta,
os nomes das primeiras esperanças,
o meu nome tantas vezes sussurrado
de tantas maneiras indiferentes!

Manuel António Pina
(através de Raul Alvito)

Arte - Monte Alentejano com Urze (2007) - óleo s/tela de linho de Salvação Barreto

A Moura da Nora

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Numa noite de Primavera, poucos dias depois da tomada de Faro, um cristão passava perto do Rio Seco, onde antes entravam as marés quase até Estoi, quando ouviu umas vozes tristes proferidas mansamente. Era meia noite e receou-se o cristão de alguma cilada. Parou e pôs-se a escutar, esforçando-se em distinguir uns vultos, de onde supos virem as vozes.
Em poucos momentos percebeu que eram um mouro e uma moura. Aquele aparentava os seus 48 a 50 anos e a moura era uma jovem em atitude de quem suplicava. O homem, numa expressão de angústia dizia:
- Não pode ser filha minha, aqui ficarás encantada
- E por quanto tempo querido pai?
- Até que esta nora dentro da qual mandei construir o teu palácio seja esgotada a baldes sucessivamente e sem intervalos.
E ao mesmo tempo que proferiu estas palavras, fez uns sinais cabalísticos e levantou os olhos para a lua que descrevia o seu giro na amplidão dos céus. A jovem depois destes sinais não proferiu palavra alguma e deixou-se lançar ao fundo da nora, sem proferir um ai. O mouro desapareceu em um momento sem que o cristão pudesse notar a direção que ele tomara.
No dia seguinte voltou o cristão aquele lugar e viu então a nora, cujo engenho mourisco era muito velho e usado. Tratou logo de saber a quem pertencia a nora e o terreno e comprou-os por bom preço. Mandou construir ao lado uma cabana de junco e para ali transportou alguns moveis. Passados dias começou o homem convenientemente auxiliado por um grande balde a trabalhar no esgoto da nora. Naquela faina trabalhou horas e horas sem interrupção dia e noite.
Quando no fundo da nora era já tão pouca água que nem enchia o balde desceu agarrado a uma corda. Apenas assentou os pés no fundo apareceu-lhe uma grande serpente que saíra de um buraco que comunicava para a nora. A presença do bicho foi o bastante para ele se encher de horrível pânico e sem tratar de saber se o animal vinha com más intenções subiu a mesma corda e saltou cá para fora. Nunca mais ali voltou, soube porém, dias depois, que a nora estava completamente entupida porque as suas paredes tinham caído e que a cabana por ele construída fora queimada em certa noite. Daí em diante começou a gente a falar do aparecimento de uma moura encantada naquele lugar, aparecimento que ainda hoje se repete, pois que atualmente foi reconstruida a nora.

Ataíde Oliveira em As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve

 

Fotografia - Nora (Faro) por Isaura Almeida

 

A Semente

 

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Pelo caminho estreito que procuro,
fogem, grasnando, patos assustados.
Entre o caminho e as quintas há um muro
simpático, – caiado dos dois lados.

Sempre que vê passar bocas famintas,
segreda para dentro, resoluto;
e logo qualquer árvore das quintas
deita um braço de fora e estende um fruto.

Um dia, o vento trouxe uma semente;
a terra que no muro dormitava
lembrou-se que era terra… e, de repente,
brotou do muro uma figueira brava!

Leonel Neves, em "Natural do Algarve", Guimarães Editores, 1968

Arte - Falcão Trigoso - Seca dos figos em Alte

Ao sul

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A água tomou conta de tudo à minha volta. Chove dentro e fora da janela, chove dentro dos meus braços impedindo-me de voar. Boiando pela casa, barcos destroçados de velas rotas, deixam entrar a dor de não ter um mar. Quero libertar-me desta luz triste que se apega aos ossos, sentir o cheiro das flores de amendoeira nos quintais, mas os deuses não permitem que floresçam… ecos dum tempo que não vivi enchem-me a memória, tento aprisionar os melros que passam em fugidios voos para que pintem com o seu canto a casa em que alicerço o meu sonho… Semeio então na paisagem flamingos rosados, limícolas de bicos laboriosos, corvos marinhos de asas azuis e garças de colos altivos. Construo uma jangada de sonhos anilados e numa linha em V navego para o sul e para a luz neste fim de tarde onde mastros e flores se afogam nas águas…

Maria Jorgete Teixeira

Fotografia - (Algarve)de Martyna Mazurek

 

Évora!

 

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Évora! Ruas ermas sob os céus
Cor de violetas roxas ... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as míseras vaidades!

Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora! ... O teu olhar ... o teu perfil ...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me almoroça!

... Em cada viela o vulto dum fantasma ...
E a minh'alma soturna escuta e pasma ...
E sente-se passar menina e moça ...

Florbela Espanca

Arte - Évora, por Leonel Borrela
— com Leonel Borrela.

A vida

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As águas
do rio correm,
vão caminhando
p’ro mar...
são como
a vida do Homem
a caminhar
sem cessar...
rio abaixo
vão as águas
deslizando
de mansinho...
levam com elas
as mágoas
que encontram
no caminho!...
As águas
no seu sentido
o Homem
no seu destino...
ambos
caminham na vida
um caminho
desconhecido!

Maria da Graça Dimas, em "Terraluz (Colectânea de Poesia de Poetas Algarvios)
(Olhão)

Arte - Rio Arade, Ferragudo por Inês Dourado