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RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Livro de eros ou as teias do desejo

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I
Sinto-me um pássaro, um Pégaso que voa no mar
para dentro de um céu iluminado — poderás imaginar
as estrelas que brilham dentro de ti?
II
Caio onde te elevas — levantas o dorso, as asas e abres-te
como se fosses água; e toda me inundas embora ardas
onde sou sede, e nela bebo e ardo quando me visitas.
III
Cheiras a mar, és uma concha, um pássaro faminto
e em ti me perco, em tuas glândulas nocturnas —
abre, meu amor, abre que não te amo há mil anos.

.
Casimiro de Brito, em "Livro de eros ou as teias do desejo”

Fotografia de Jorge Florêncio
Senhora Da Rocha

 

Uma flor interior

 

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Há florestas. Há jardins. E há o teu jardim (uma flor interior) onde me perco, onde o mínimo se expande, onde sabe bem perder-me, onde mergulho num campo de flores rubras, luminosas.

Casimiro de Brito, "Livro de eros ou as teias do prazer"
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia de Martyna Mazurek fotografia
(Faro)

Poeta como tu, irmão

 

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Não sou mais poeta do que tu, irmão!
Tu cavas na terra a semente da vida,
eu cavo na vida a semente da libertação.

Somos partes perdidas dum só
que a razão de ser das coisas
separou. Não sou mais poeta do que tu, irmão.
A mãe que te gerou a mim me gerou —
não foi ela quem nos trocou
as mãos, a voz do coração.

Abandona um pouco a charrua, arranca
da terra os olhos cansados, e limpa
o sujo da cara ao sujo das mãos — onde
os calos são um só e as rugas da morte
caminhos cobertos de pó.

E olha
na direcção do meu braço cansado, sem
músculos quadrados
nem merda nas unhas, mas que te aponta
o mundo onde as raízes do dia, a luta, o trabalho
reclamam suor
mas não te roubam o pão.
Arranca os olhos da terra, irmão!

Casimiro de Brito, em "Solidão Imperfeita"
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Ilustração - postal ilustrado (Algarve típico)

Quem amou ainda ama

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Quem amou ainda ama,
vai ouvir a vida inteira a canção furtiva,
vai ouvi-la e cantá-la
ao acaso dos ventos que trazem
do Ocidente e do Oriente
árvores e respirações animais
que supuram a febre do mundo — quem amou
ainda ama, vai cantar a vida inteira
o ninho de mulheres onde se reúnem
a terra e o céu, vai aceitar
o domínio das águas sedentas
sobre o osso e a pedra: o grande ofício
é transformar a terra em osso
e o osso em carne
desamparada. Quem amou
não sabe nada, vai cair
a vida inteira. Mas que força é essa, se não é
um saber? Um saber de bocas invisíveis
e do enigma das águas que são álcool
da carne e pássaro que regressa
ao ninho da mãe. Quem amou
vai amar a vida inteira.

Casimiro de Brito, “Arte de bem morrer”
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia - Foia (Algarve) por Martyna Mazurek

Martyna Mazurek fotografia.

Aurora Boreal, ao Sul

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As flores têm, na sua beleza, a ideia feliz de morrer em breve. Tal como eu, vagabundo ou descobridor de cidades... talvez fosse melhor nada disto ser par distorcer os cordames da memória, pela qual, ainda hoje, me invades.

Manuel Neto dos Santos, em " Aurora Boreal, ao Sul"
(Alcantarilha)

Fotografia de Vitor Pina
Vitor Pina - Photography

Círculo de Fogo

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Todos os meus versos são charruas reluzentes apontando ao mar.
Rasgam terras férteis de quem se procura…eis a viagem.
Abrir os braços, tal como a terra se escancara na oferta sublime de se entregar para que se faça, em si, uma outra vontade.

Todos os meus versos são retratos da distância como mistério;
Sou um quase pescador-lavrador-pastor…
Que mo diz a charrua do espanto, perante o universo.

.
Manuel Neto dos Santos, em "Círculo de Fogo" a publicar no dia 20 de março de 2016 em S. Bartolomeu de Messines
Nasceu em Alcantarilha (Silves-Algarve) a 21 de janeiro de 1959.

Fotografia de Vitor Pina - Photography
(Portimão)

 

Na via do mestre

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Adiro ao feminino desfaço-me
Em águas sequiosas e bebo
A loucura que me falta a mãe obscura
Quando me confundo nos
Ciclos da matéria a tua e conheço
A seda perecível da morte. Adiro ao sujo
À lama carnívora de um rio
Que tem do lençol o calor limpo
E fresco. Adiro à terra. Adiro à dor
Com sua carne viva suas flores mais íntimas
E gloriosas: águas que bebem a água
Nas bocas do mar: gota
A gota, maré
A maré.

Casimiro de Brito, no livro "Na via do mestre"
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia de Jorge Florêncio
Senhora Da Rocha

 

Calei a saudade

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Calei a saudade;
Mordaças lhe pus.
Pedindo-lhe calma,
Mais ciso, decoro…
Cantando, hoje choro
Embalando a alma
No brilho da luz
Por detrás da grade.
Memórias de amor,
De ternos carinhos
Da voz murmurada…
Sem ti não há nada;
Nem sonhos sozinhos,
Nem eco, ou vigor.

.
Manuel Neto dos Santos
(Alcantarilha)

Fotografia de Vitor Pina
(Portimão)

 

Ó minha lua

 

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Teu romantismo bebo, ó minha lua,
num cálice esculpido em pedra grés
que derramo, por mim, cabeça aos pés,
línguas de sangue sobre a pele nua.
Cerimónia pagã, junto aos menires,
por entre os estevais de flores nevadas…
ó lua, minha irmã, irmã dos prados,
do meu génio; esta herança dos vizires.
Decanta-me, a desoras, nova luz
para receber a aurora, por inteiro…
irmana-te da alma, como o outeiro
e veste-me de enlace que seduz.

Manuel Neto Dos Santos
(Alcantarilha)

Fotografia - Luar Algarvio por Leos Photos

Deitado na areia

 

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Horas e horas deitado na areia caído
Na areia enterrado na areia
Ou por algum braço arremessado. Pouco a pouco
Deixei de sentir os grãos finíssimos
Colarem-se-me à pele. Deixei de ver
O céu que meus olhos olhavam.
As primeiras ondas que me tocaram os pés
Ainda as senti — bocas minúsculas
Bebendo o meu sangue silencioso —
Mas as segundas já não eram frias nem quentes já não eram
Suaves nem ríspidas já não possuíam
Lábios nem dentes. E nada sei
Das seguintes como nada já sabia
Da areia nem do sal nem dos bichos que passavam
Por cima do meu corpo depois de terem passado
Pelo corpo da areia.
Durante algum tempo durante a rigorosa eternidade
De um momento
Foi como se eu fosse também areia mar e sol
E talvez eu tenha sido
Areia sol e mar. O resto
É vento.

Casimiro de Brito
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia - Praia do Amado, Costa Vicentina, por Euridice Cristo
 

A escuta do coração da terra

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Das poucas coisas absolutamente necessárias, eis a escuta do coração da terra, para que não me distraia com o ruído do mundo; lembrando- me a brancura acidulada no regresso sobre os eirados seguindo, com o olhar, o rápido e estridente voo dos gaios e a leveza do pó pelo andar apressado dos rebanhos.

Manuel Neto Dos Santos
(Alcantarilha)

Fotografia de Artur Pastor

Tudo o que sinto

 

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Tudo o que sinto é um torreão
De onde avisto o mundo, todo em volta,
Nada mais tendo nem por guarda ou escolta
Que os meus sonhos compostos de ilusão.
E quando à noite o único cansaço
Se espelha na minha alma satisfeita…
Vejo um rasgo de lua que me enfeita
O céu que, deste meu olhar, vos faço.

Manuel Neto dos Santos, "Tímida Exuberância!
(Alcantarilha)

Fotografia de Diamantino Inácio
(Faro)

A Origem do Mundo

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De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

Nuno Júdice, em "Meditação sobre Ruínas"
(Mexilhoeira Grande)

Fotografia de Euridice Cristo
(Olhão)

As Aves

 

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Afluem às margens, jogam
como se a água lhes pertencesse,
pousam no meio dos arbustos
como se tivessem todo o tempo!

No entanto, sabem que as nuvens
vão encher o céu; e que o norte
irá enviar o vento frio que as
há-de arrastar para sul, deixando
atrás de si o silêncio
nos campos. Mas pouco lhes importa
isso, quando se juntam, e
cantam a efemeridade do
instante.

Nuno Júdice
(29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

Amor místico


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Quando a minha alma nasceu
Para onde olhou primeiro,
E viu tudo um nevoeiro,
Foi lá cima para o céu...
Que a alma nunca lhe passa
De ideia a fonte da graça!
Em toda a ânsia de luz,
Em toda a ânsia de gozo,
Sempre aquele olhar ansioso
Nesse ideal de Jesus...
Nesse bem que não se exprime...
Êxtase de amor sublime!
Olhava da solidão,
Onde se sentia presa,
Com a natural tristeza
Dos ferros de uma prisão...
À espera sempre da hora
Que lhe raiasse a aurora!
Bem a chamavam de cá
Sempre os cuidados do dia;
Ela, que nunca os ouvia,
Olhava, mas para lá...
Donde ela mesmo viera,
Donde todo o bem se espera!
Um dia (nem eu sei qual,
Que em suma foi isso há tanto!)
Vê com uns olhos de espanto
Romper-se a névoa geral;
E como um sol recortado
Nesse mar enevoado...
E dentro desse clarão,
Como em círculo de prata,
Que imagem se lhe retrata,
Fosse verdade ou visão?
A mesma que ela apertava
Nos braços quando sonhava.
Mas a visão, em lugar
De vir cair-lhe nos braços,
Voa por esses espaços
Até já mal se avistar...
Indo assim a luz minguando
E indo-se a névoa cerrando!
E hoje a minha alma, não sei
Se nessa névoa cerrada
Vê tal visão embrulhada
Ou nem já vestígios vê...
Sei que se ainda me anima,
É de olhos fitos lá cima.

.
João de Deus, em 'Campo de Flores'

Fotografia de João de Deus

 

Morrer

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Morrer
na sua essência
deveria ser
não uma fuga, mas uma desistência.

Derradeira viagem sem drama,
sem angustia, rituais, ais e choro.
Um breve sopro, um leve apagar da chama.
um lento desmaio, como algo que se derrama.

Tudo muito calmo, muito asséptico e indolor.

Uma ausência.
Um adiantado
estado
de sonolência.

Morrer deveria ser
muito naturalmente
um descer
ao útero da terra, calmamente.

Um ir sem se dar nota de que se parte.
Um aroma de rosas, um tema de Mozart.

Morrer deveria ser
assim como rodar um botão, click e zás;
algum sono, muito silencioso, imensa paz.


Miguel Afonso Andersen, em "Tríptico de Vozes"
(Porimão)

Fotografia de Euridice Cristo
(Olhão)

 

Escrever

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Escrever, é talvez uma forma de resistir.

Uma maneira do poeta dizer não
ao galope do tempo,
ao cilício da mágoa,
à acidez corrosiva do medo.

Escrever, é também uma viagem
uma descoberta dentro de nós.
Uma demanda.
O cruzar do tempo com o modo
na inútil busca da significação da vida.

Escrever, pode até ser uma auto-flagelação,
um chicote de palavras indomáveis,
uma vergasta de rimas dissonantes,
uma chibata de sílabas agrestes
a tecerem na pele
o óbvio itinerário do sofrimento.

Escrever, pode até ser uma forma de amar,
secreta e tamanha. Discreta e estranha.
Uma espera tardia pela cousa amada.
(a espera de quem já não espera nada).

Escrever,
até pode acontecer
por uma outra razão, por um outro motivo.
como a do poeta se convencer
que escrevendo se mantém vivo.

Miguel Afonso Andersen, em “Tríptico de Vozes”
(Portimão)

 

Sabendo que te amo

 

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Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

.
Nuno Júdice, no livro "A Fonte da Vida"
(29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande)

Fotografia - Artur Pastor "Motivos do Sul". Décadas de 50 a 60. Armação de Pêra.

Um Rosto

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Apenas
uma coisa inteiramente transparente:
o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte
nos teus olhos, que pude ver ainda
através de pálpebras semicerradas, pestanas húmidas
da geada matinal, uma névoa de palavras murmuradas
num silêncio de hesitações. Há quanto tempo,
tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo
se enche de bolor e fungos; limpo os papéis,
cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto-
grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos
por manchas vagas como aparições; e sinto, eu
próprio, que uma parte da minha vida se apaga
com esses restos.

Nuno Júdice
29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande

Fotografia de Laura Almeida Azevedo
(Faro)

Amores, Amores

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Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.

Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.

Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.

Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

João de Deus, em 'Campo de Flores'
(São Bartolomeu de Messines- 8 de março de 1830\ Lisboa -11 de janeiro 1896)

 

Fotografia retirada da NET

Canto XVIII

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Amor, o tempo voa no vendaval
no ciclone dos minutos e eu cercado
pela memória do dia em que afinal
nasceu esse sonho, tão ansiado.

O tempo voa amor e assim voando
transforma o sonho na bela sinfonia
onde, a flauta mágica do amor tocando,
me embriaga na memória desse dia.

O tempo voa amor e em cada voo
o sonho revive, alastra, avança
e eu, nestes versos em que me dou,
aguardo, na ilusória esperança,
que o teu tempo seja coincidente
no desejo, na memória, no espaço
com aquele que, no sonho ardente,
espera da realidade, o terno abraço.

.
Miguel Afonso Andersen, no livro "Circum-Navegações" (Raiz perturbada)
(Ferragudo)

Fotografia de Jorge Florêncio
Senhora Da Rocha

É plural, o amor.

 

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É plural, o amor. Só uma visão antiga, antes de se saber que somos construídos por camadas sucessivas, podia imaginar o amor como um instrumento monolítico. Essa concepção priva as pessoas da alegria e amarra o amor à idade. De facto, não existe essa amarra se formos cultos do ponto de vista psicológico. O amor é um estado de alma que evolui até à morte.

Lídia Jorge
(Loulé, Boliqueime, 18 de junho de 1946)
 
Fotografia de Lídia Jorge

Algarve

 

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Tudo é sol e sangue das nuvens. Florescem as amendoeiras, chora o mar para si mesmo e nos grafismos do poema, a minha terra ao sul é como uma esquina do ar para esta essência, que de palavras tem fome... e assim te ofereço a forma dos meus versos, como se fossem ramos sinceros de suspiros, neste teu amado nome.

Manuel Neto Dos Santos
(Alcantarilha)

Fotografia de Filipe da Palma
(Algarve)

A Paz

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Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno inseto da memória
de quem sou ninho e alimento?

.
Se eu te pedisse a paz, a pedra do silêncio
cobrindo–me de pó, a voz limpa dos frutos,
o que me darias respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

.
Perdoa–me ser tão só, e falar–te ainda
do meu exílio. Perdoa–me se não te peço
a paz. Apenas pergunto: o que me darias
em troca se ta pedisse? O sol? A sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?

.
Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,
no centro do coração?

.
Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza. Falo de mim, entrego–te
o meu destino. E a morte vivo só de perguntar–te:
o que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas
da liberdade?

.
Casimiro de Brito
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia - Algarve década de 50 por Artur Pastor



 

Tudo no campo

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Tudo no campo me sugere parábolas.
Olha, o caracol menino que atirei raivosamente
para longe
porque me invadiu a roseira
não morreu:
arrasta-se todo pimpão pelos ladrilhos do pátio.
Para onde?
Ele parece saber.
Sabes mais do que eu, felizardo!
Também me arrasto pelo meu pátio de existir
mas não sei para onde vou.
Mereces que te poupe a vida.
Mesmo que me comas as rosas.

Teresa Rita Lopes
(Faro, 1937)

Arte - Pedro-Buisel
(Alentejo)

 

Em frente do mar

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Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou à nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer.

Nuno Júdice, em "Estado dos Campos"

Fotografia - Alvor- Portimão, por Filipe Santos

— com Filipe Santos Photography/Fotografia

Cai a chuva no portal


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Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa cortina
Não a corras, não a rasgues, está caindo
Fina chuva no portal da nossa vida.
Gotas caem separando-nos do mundo
Para vivermos em paz a nossa vida.
.
Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa toalha
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo
Chuva fina no portal da nossa casa.
Por um dia todos longe e nós dormindo

.
Lídia Jorge (Inédito)
(Loulé, Boliqueime, 18 de junho de 1946)

Fotografia - Faro por Vitor Pina

Vitor Pina - Photography.

O Alfabeto de João De Deus

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Em frente do quadro preto, o nosso colega abriu os braços, enviou o olhar para o fundo da sala e disse – “A Vida, poema de João de Deus”. Baixou os braços e estendeu as duas mãos como se fosse oferecer um material precioso aos seus companheiros - “ A vida é o dia de hoje”. Recolheu os braços, mas não as mãos que deixou estendidas - “A vida é ai que mal soa, A vida é sombra que foge.” E ao passar pela palavra ai, elevou a voz em tom de fundo suspiro. As mãos estavam compostas junto à pequena camisa branca. O cinto preto fazia dele um homem em miniatura. Um lacinho azul criava um tom de cerimónia tão alto que apetecia chorar. Ele levou os braços de novo adiante e falou de neve, agitou-os quando falou do fumo que se esvai, e do momento que passa, depois juntou as duas mãos e encostou a cabeça aos dedos como se pensasse, e pronunciou - “Mais leve que o pensamento”.
Nós estávamos siderados, sentados, elevados e ao mesmo tempo diminuídos pela perícia do nosso colega trajado a rigor. Então ele falou de vento, folha, flor, corrente, sopro, estrela cadente, ave, nuvem, mares, ondas, pena e asas, e a cada uma dessas palavras cheias que recitava, os seus braços faziam um gesto que se assemelhava em alguma coisa com o ser invocado. Os braços do nosso colega ondularam, tremeram, voaram por cima da sua cabeça, e todo o seu corpo se encolheu como se tivesse sido trespassado por uma dor, e depois se alongou como se dela tivesse saído ileso, quando atirou para o chão, e depois para o ar, os quatro últimos versos - “A vida, pena caída, Da asa de ave ferida, De vale em vale impelida, A vida o vento a levou!” Disse ele. Nessa altura, nós não sabíamos o que era o aplauso. Ficámos silenciosos, estarrecidos, aprisionados num momento que não queríamos que se movesse. Mas moveu-se. O nosso colega regressou à primeira carteira, ainda a tremer, todos nós a olharmo-lo com o respeito dos súbditos, e eu, a partir do meu lugar, não conseguia segurar o instante. Foi assim que aprendi a pronunciar a primeira letra do alfabeto, aquela que ensina a decifrar o enigma da transitoriedade, e com a qual se escrevem todas as palavras do mundo.

Lídia Jorge, em "Efeméride"
(Loulé, Boliqueime, 18 de junho de 1946)

 

Linhas do amor na página da face

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Linhas do amor na página da face
Dos valados derrocados, pelas fazendas.
Ó canto da cigarra tresloucado,
Ensurdecendo amêndoas e al- farrobas.
Rosa –dos- ventos;
Almeixário antigo
O figo ao sol,
Esteiras de tabúa em lunipleno…
Venho de al- Gharbe, na memória dos alqueires
E de arrobas…
Que todo este meu canto é agareno,
Que tenho em Ibn Ágil meu farol.

Manuel Neto Dos Santos, no livro "Sulino"
(Alcantarilha)

Mosaico fotográfico "Algarve" da autoria de Filipe da Palma

 

E havia a casa

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E havia a casa
onde, para além do fogo sagrado da tribo,
se guardavam os afetos possíveis
e o azul sereno e límpido do teu olhar.

A casa ainda lá está,
despovoada,
caiada
pelo acre e ocre das sombras de árvores antigas,
impregnada
pelo odor bafiento de todos os silêncios.

Almanxar, açoteia dos frutos secos da infância,
barrica da salga do peixe e da sobrevivência,
convés e beliche de traineira cravada no afeto.

Tempo desse tempo que com o tempo se esvai,
porque mais do que um tecto,
a minha casa foste tu, pai.

.
Miguel Afonso Andersen
(Ferragudo - Algarve)

Fotografia de Ferragudo - Lagoa
 

Venho falar do verbo amar

 

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Hoje sinto claramente
que cada verbo tem um tempo de conjugação.
Há um tempo de semente,
há um tempo de gestação.
Depois é tempo de raiz, caule, folha e flor.

Venho falar do verbo amar.
Do tempo do amor.

Na minha taça nunca houve desse mosto desse fel
nunca dedilhei na guitarra do meu tempo, essa melodia
e se alguma vez, entusiasmado, domei esse corcel
mais não foi, do que o sonho de um só dia.

Se desse tempo de amor, algum foi meu
ah, então decerto que fui um Romeu
com Julieta já sequestrada.
Fui decerto Pedro já sem Inês.
D. Quixote sem Dulcineia.
Talvez Ulisses navegante e conquistador
com Penélope tecendo o linho, onde a espera fez
o desenho duma sereia.

Falo-vos do verbo amar. Tempo do amor.
Beijos e risos frescos pela madrugada.
Falo-vos do desespero e também da dor
dos que tiveram a festa sempre adiada.

Há muito que a barca do meu tempo se fez ao mar.
Sou um nauta desembarcado que se convence
que é inútil (é impossível) tentar domar
o puro sangue que há no tempo que não nos pertence.

.
Miguel Afonso Andersen, do livro "Tríptico de Vozes"
(Portimão)

Fotografia - Filipe Santos Photography/Fotografia

Sobremesa com fruta e filosofia

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Uma ideia é assim: redonda
como esta maçã que eu
corto ao meio, e que
depois descasco
para dentro do prato

Um pensamento é assado:
com o açúcar a desfazer-se
no meio dele escorrendo
para o fundo a travessa
com o vinho doce da
metafísica que nasce
quando tudo arrefece.

E o conceito é assim
e assado, como a ideia
da maça que a boca saboreia
no pensamento.

Nuno Júdice, em "O Estado dos Campos"
(29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande)
 
Cartaz elaborado pela página RUMO AO SUL

 

Lábios

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que encontram outros lábios
num meio de caminho, como peregrinos
interrompendo a devoção, nem pobres
nem sábios numa embriaguez sem vinho:

que silêncio os entontece quando
de súbito se tocam e, cegos ainda,
procuram a saída que o olhar esquece
num murmúrio de vagos segredos?

É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,
que essa imagem desce de agosto, ou
setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.

Nuno Júdice
(29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande)

Fotografia de Jorge Florêncio
Senhora Da Rocha

Para Sophia

 

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Lua branca da madrugada
pousaste teu cinto na terra
e o mar te veio buscar.

Já lá estavas, de lá enviaste
as palavras que um tempo
fora do tempo te tinha dado
e nós à espera desse momento
alado, em que as tuas letras transformassem
linhas pretas num campo iluminado.

Agora estás lá dentro, agora desde que a lua
e o mar se unem e fazem as marés
mas só alguns o sabem, tu soubeste e
nisso és.

Voltaste à terra branca, e na cidade
um sino bate a hora como se o dia
de hoje apagasse um foco incendiário.

Teu fogo porém vivo, é de outra chama
e a cama onde te deitas, doutra cambraia
e a praia onde te banhas, de outra
água.

Lídia Jorge
(Loulé, Boliqueime, 18 de junho de 1946)

Fotografia - Prainha por Bruno Palma

Avarento

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Puxando um avarento de um pataco
Para pagar a tampa de um buraco
Que tinha já nas abas do casaco,
Levanta os olhos, vê o céu opaco,
Revira-os fulo e dá com um macaco
Defronte, numa loja de tabaco...
Que lhe fazia muito mal ao caco!
Diz ele então
Na força da paixão:
— Há casaco melhor que aquela pele?
Trocava o meu casaco por aquele...
E até a mim... por ele.

Tinha razão,
Quanto a mim.
Quem não tem coração,
Quem não tem alma de satisfazer
As niquices da civilização,
Homem não deve ser;
Seja saguim,
Que escusa tanga, escusa langotim:
Vá para os matos,
Já não sofre tratos
A calçar botas, a comprar sapatos;
Viva nas tocas como os nossos ratos,
E coma cocos, que são mais baratos!

João de Deus, em "Campo de Flores"
(São Bartolomeu de Messines- 8 de março de 1830\ Lisboa -11 de janeiro 1896)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

Saudades do Alentejo

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Saudades, tenho saudades
Do meu canto alentejano
Evocando a mocidade
O recordo todo o ano.

O pão quente, no panal
Saidinho da fornada
Eu comendo-o no quintal
Sentia-me regalada.

As sopas de beldroegas
Fumegavam na panela
Os meus irmãos nas refregas
E eu ao lume, de vela.

Os grilos tinham cantado
Toda a manhã soalheira
Da toca com ar encantado
Eu ficava sempre à beira.

Pela tarde, bafo quente
Vindo de lá do montado
Antecipando o Poente
Ficava o céu encarnado

As migas com entrecosto
Iam no tarro de cortiça
Comidinhas, ao solposto
Naquele cerro que enfeitiça

.
Maria Vitória Afonso, "Contos e vivências do sudoeste alentejano" Ed. Colibri, Lisboa

 

Cartaz elaborado pela página RUMO AO SUL

https://www.facebook.com/rumoaonossosul/

Sulino

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Como a um templo, às vezes te venero
De rastos sobre a areia deste ensejo;
Correndo seca e Meca o desespero.
Sou os traços dos pés à beira – mar
Que a espuma acaricia, e vem roubar
Para os requebros do azul… que agora vejo.
.
Manuel Neto dos Santos, do livro "Sulino"
(Alcantarilha)

Fotografia - Vitor Pina - Photography
(Portimão)

Aroma de poesia

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Entre anseios e afagos,
pedras frias, profanas, amargas,
vislumbra-se um mar ávido a Sul,
invocando a volúpia e o prazer,
traduzido por gestos que transpiram o seu sal
num deslizo vertical de ternura,
uma sensação estranha, pura,
que estrangula a voz e a palavra,
com um simples acenar de desejo,
sua nudez presencial,
aroma de poesia.

Marco Mangas
(Tavira)

Fotografia de Vitor Pina - Photography (Prainha - Alvor - Portimão)

De manhã

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De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
refletisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a indicar
o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.

 

Nuno Judice
29 de abril de 1949 . Mexilhoeira Grande

Fotografia de Jorge Manso (Praia do Evaristo - Albufeira)

 
 

Procuro teus traços

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Procuro teus traços
em rosto configurados
abro bem os olhos
de névoa enevoados
tacteio com os meus dedos
rugosos e encarquilhados
e não te encontro
em forma humana.

Mas tu és aquele...
que faz parte do Oceano
que abarca tuas águas
e se funde contigo.
Sim, tu és o Mar...
E eu... eu sou a Falésia
que te observa
e não cessa de te olhar.

Em ti, eu planto
os meus sonhos sonhados
e os que estão por sonhar.

Tu és aquele
que em marés altas
se avoluma e se espraia
e à noite
me vem beijar.

Lenea Bispo

Fotografia - Portimão por Vitor Pina - Photography

Um Corpo um País

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Frente ao mar
meu corpo ardente e nu de marinheiro
pelo sangue. Fervem-me nas veias
um milhão de ondas em repouso.
Em meus olhos cativos e saudosos
— imagem da minha solidão imensa —
o abraço que me une a ti
ó mar
deus pagão de olhar luminoso e belo!
Recebe ó mar este afluente silencioso
que para ti corre e contigo se confunde
o líquido canto a quem me digo
pelo drama de não ser só teu.

 

Casimiro de Brito
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Fotografia -Praia de Faro.por Martyna Mazurek fotografia

Círculo de Fogo

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E se tudo isto não fosse bem assim?
Se não fossem os riachos aquilo que julgamos ser;
Corpos de água em movimento…

E se a brancura fosse apenas a ausência de cor e o silêncio
(que de facto não existe)
Nada mais fosse que a espera do regresso da tua voz…
E se morrer, meu amor, fosse somente o terror de te sentir distante?

Mas, tudo é de facto bem assim; vivo de facto…
Quando te vejo chegar, ao longe, lá mais adiante.

 

Manuel Neto dos Santos, do livro "Círculo de Fogo"
(Nasceu em Alcantarilha - Silves-Algarve - a 21 de Janeiro de 1959)

Fotografia - Monchique por Filipe Santos Photography/Fotografia

Ingénuo pensei...

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Ingénuo pensei,
que o adeus era um beijo, um até logo,
um barco partindo já com velas de regresso.
Não esta ansiedade, este silêncio,
este roçar arrítmico pelas dobras da espera.

Crédulo julguei,
que a distancia era um rio navegável
pela correnteza do cio,
entre o desejo de partir e ânsia de chegar.
Não este nevoeiro espesso e opaco
que a luz verde do teu olhar não rasga
e me cristaliza na memória
o sabor tutti-frutti do teu sorriso.

Inocente acreditei,
que a saudade era apenas e só
uma palavra dedilhada
na escala polifónica da tristeza.
Não esta guitarra em ferida,
este cilício que vibra e dói por dentro
no dó sustenido da tua ausência.

Entre puros enganos corre assim um tempo
padrasto da minha hora e desta idade
em ilusões e delírios derramada,
mas no canto mais perene desta liturgia
declaro-te para sempre, rainha coroada
no trono da minha mais ínfima alegria.

Miguel Afonso Andersen
(Ferragudo\ Algarve)

Fotografia - Praia do Castelejo num por do sol com neblina, por Euridice Cristo

Geometria das Aves

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As aves são agentes
Da geometria fractal
Imitando estrelas cadentes
Na leveza dos voos fátuos

Desenhos a grafite no céu azulado
Esboçando traços de ângulos agudos
No veludo do entardecer
Para decifrar as claves da lua
Entre o céu esboçado em nebulosas
E os poros do corpo e da terra
Beijada pelo dia declinado

Mergulhos nas árvores senoitadas
Restando do verde dos braços
A abrir-se como asas de sonhos
Libertos nas arcadas dos túneis dos voos

Na manhã seguinte as aves voltarão das grutas
Sem medo dos homens
E os homens voltarão na explosão da luz
Levando os archotes
Nas asas das penumbras
Para iniciar outro semicírculo
Traçado em arcos de giz e arco-íris
Nos retalhos das teias do sol
Fazendo a textura da pele em geometria

.
Fernano Reis Luis, em "Ipsis Verbis"
Lançamento no próximo dia 18 de junho, 16h00, Casa Manuel Teixeira Gomes, Portimão

Fotografia de Jorge Florêncio

O vermelho que me pedes

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Dizes que te falta o vermelho e eu não sei
porque te não chegam todas as cores que te dei...
Num dia de tempestade quando o sol se pós à espreita
encontrei o arco-íris e roubei-lhe o violeta
Ficaste da cor da nobreza, do mistério e da sedução
E por um instante tão breve alegraste-me o coração
Mas não chegando uma cor, na manhã primaveril
Estiquei-me mais um pouco e alcancei... o azul e o anil
Com esse trio de cores eras um crepúsculo encantado
Mas com olhos tristes pedias-me o encarnado
E eu à espera que o Sol brilhasse sobre as gotas do meu suor
Para poder roubar as cores uma a uma e provar-te o meu amor
Escalei à mais alta montanha quando um raio de luz rompeu
E apanhei o verde para a cor dos olhos teus
Verdes mas tão sem brilho os teus olhos a pedir
“Preciso do vermelho, tão certo como o sentir!”
E eu não sei o que querias, tu, tão linda, sentir
se era tanto o que eu sentia só por te colorir
Dou-te o sol que é amarelo e o laranja, que é mais quente
Dou-te o mundo inteiro, amor,
Dou-te o meu amor ardente
O vermelho que me pedes, é cor que não é real
É tão breve, tão efémera, dura tão pouco afinal
“É sangue a correr nas veias, é cereja, é rosa flor,
É paixão o que me falta, é o ar, é o amor!”

Poema e fotografias de Eurídice Cristo (Olhão)

A Terra, o Céu, o Mar

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Eu quis um dia pintar
a magia dum abraço.
Tinha a Terra, o Céu, o Mar,
para puder encontrar
inspiração para o traço
que tornaria divino
o quadro do meu destino.

Mas, dos três, qual escolher?
O dilema era tão grave,
todos me davam prazer
e me faziam viver
um sonho alegre e suave.
Tive de pedir conselho
a um “Sapiente Velho”.

Tinham os três a valia
para mil quadros perfeitos.
Disse-me Deus, com magia
e denotada mestria:
- Devem ser todos eleitos!
- O Mar é prata, é um véu
sobre a Terra prometida
que anseia a paz, que é o Céu.

No quadro pintei o trio
duma beleza que encerra
Mar e Terra, feitos brio,
no Céu que é a minha serra.

Glória Marreiros
(Monchique)

Arte - Caetano Ramalho
(Portimão)

No sul as Mimosas

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na renda do arvoredo
entre o sol e a sombra
em todos os espaços
os passos dos poetas

entre a chuva e o vento
na água correndo
na garganta dos pássaros
a voz dos poetas

no murmúrio dos rios
na trança do tempo
na trama dos fios
os passos dos poetas
no silvestre coro
do riso e do pranto
as secretas mouras
tecem o encanto:

no pulsar da pedra
a voz dos poetas

 

Josefa Lima, do livro "No sul as Mimosas"
(Vila Real de Santo António)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

À memória de al- Mutamid

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À memória de al- Mutamid,
Herança transcendente do Sul

Ao som de belas cantigas
De abelhas que, pelo jardim,
Vão de corola em corola…
Ouço as cadências antigas
De Al- Hambra que mora em mim;
Peço poesia por esmola.

Manuel Neto dos Santos, do livro "Sulino"

Fotografia - Silves Praça Al- Mutamid por Euridice Cristo

As terras

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Terra aonde nasci, brava, movimentada,
Velha amiga do mar, minha terra arrojada,
Onde nunca o valor se extingue e se destrói,
Branca filha de heróis e mãe de tanto herói,
Bela, como tu és, é que te quero mostrar,
Com mirantes de neve, erguidos, a olhar,
Seguindo sobre a água, os sonhos e as velas,
Sob a copa do céu a sacudir estrelas!
Tens ruas brancas que se torcem e coleiam
Dando a impressão que com volúpia ondeiam,
E tendo, no esguio e apertado espaço,
O carinhoso ar afável dum abraço,
Onde há não sei o quê de morno e sensual,
Um bafo de serralho ardente, oriental.
[...]
A casaria tem alvuras argelinas.
Curvas da cor do gelo a desenharem ruas,
Têm alvores sensuais lembrando espáduas nuas...

Uma volúpia doce, astral, desfalecente,
Dissolve-se no ar embriagante e quente...
[...]
Tu tens a languidez, a dormente magia
Que abre nos corações a flor da fantasia,
Um hálito de sonho, ardente e perfumado,
Que levanta as visões dormentes do passado...
Assim, alva e serena, assim misteriosa,
Com teu lindo perfil de branca intemerata,
És como uma grácil moira voluptuosa,
Rebuçada, ao luar, no seu morghot de prata.

João Lúcio
(Olhão, 4 de julho de 1880 - 26 de outubro de 1918)

Fotografia de Jorge Florêncio
Senhora Da Rocha

Quadras

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Uma mosca sem valor
poisa, c'o a mesma alegria,
na careca de um doutor,
como em qualquer porcaria.
.
Num arranco de loucura,
filha desta confusão,
vai todo o mundo à procura
daquilo que tem à mão.
.
Vinho que vai pra vinagre
não retrocede o caminho;
só por obra de milagre,
pode de novo ser vinho.
.
Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.
.
Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
do que ganhar por não ser.
.
Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.

António Aleixo, em "Este Livro que Vos Deixo..."
(Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949)

69 Poemas de Amor

 

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Escultura e dança: o meu corpo
No chão do teu corpo: um combate
Contra a morte. Quando sou escultura,
Danças. Quando, em sossego, me acolhes,
Respiro. Depois hesito, murmuro e caio
No abismo. Silêncio. Súbito
Um sismo. És tu quem se desfaz
Enquanto em teus vasos me derramo.
O caos em movimento.
Cavalgas uma onda.
Mergulho numa fenda.

Casimiro de Brito, em "69 Poemas de Amor", 2008,
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Expressões do falar algarvio

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Apesar de algum desuso, os algarvios continuam a usar expressões e palavras que só os locais entendem com facilidade. É quase como se fosse um dialeto regional, em que expressões da língua nacional são transformadas e readaptadas à realidade local. Nas zonas rurais, devido ao prolongado isolamento a que o Algarve esteve sujeito, estes fenómenos linguísticos têm mais nítidas diferenciações, como nota Eduardo Brazão Gonçalves, autor do 'Dicionário de Falar Algarvio', mas no litoral, no Sotavento, no Barlavento ou em comunidades, há expressões e palavras que só entende quem de lá é, sem a ajuda de tradução.

Fonte:http://www.inalgarve.net/#!blank/dqxlc

A paixão da cor

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Cor, filha da Luz, é uma língua em tons
Que fala, sem rumor, à curva da retina...
Como há para o ouvido a palavra e os sons,
Nasceu para o olhar esta harmonia fina.

Escorre sobre o campo, empapuçando tudo
N'um brilho rumoroso, ardente de alegrias;
Palpita nos cetins, ondula no veludo
E fulge encarcerada em finas pedrarias.

Em toda a parte põe a asa transparente:
No mar, nos vegetais, nos montes, nos pallores...
No nosso sangue a Cor murmura intensamente,
Sugam-na p'los jardins as sequiosas flores.

Faz o cenário rubro e amplo da alvorada,
Espalha pelo Ar um pó alado e loiro,
Torna a agua do mar suave e azulada
E talha, no poente, arquiteturas de oiro.

Sonoramente vibra, em rubro, sobre os cactos:
Tem um ar de saudade, em roxo, nas violetas:
É meiga no azul dos lagos e regatos,
As azas de cetim salpica ás borboletas.

.
João Lúcio
(Olhão, 4 de julho de 1880 - 26 de outubro de 1918)