Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Manhãs do meu Algarve

14492447_617595695079494_3658289958599639454_n.jpg

 

Manhãs do meu Algarve, auroras grandiosas,
Abrindo pelo Céu girândolas de cores,
Feitas de seda e oiro e mármores e rosas,
Acordando de manso as sonolentas flores!
V`luptuosas manhãs triunfais e supremas,
Em que o ar não tem mancha, a luz não tem algemas!

João Lúcio, O Meu Algarve, 1905
(Olhão, 4 de julho de 1880 - 26 de outubro de 1918)

O meu Algarve

14344836_609662479206149_7904357070848281200_n.jpg

 
Oh meu ardente Algarve impressionista e mole,
Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol,
Meu louco sonhador a respirar quimeras,
Ouvindo, no azul, o canto das esferas
- A marcha triunfal dos mundos pelo ar. –
Para te adormecer, Deus pôs-te perto o mar,
E, para fecundar a tua fantasia,
No vasto palco azul, erguido nos espaços,
Fez mais belo para ti o drama em oiro – o Dia,
E deu, pra te abraçar, à luz, mais fortes braços.

Romântico torrão de doidas fantasias,
Namorado gentil, sensual e troveiro,
Onde o luar se orquestra em novas harmonias
E faz de neve em vez das neves de Janeiro…
Terra doirada, aonde as tardes caem mansas,
Como verga uma flor na haste delicada,
E onde os lírios são amigos das crianças
Numa amizade sã, divina, imaculada,
Algarve, onde os perfis, romanescos, dolentes,
Têm um ar de sonho e de fadiga mole,
E parecem abrir-se em curvas indolentes,
Como flores também, ao palpitar do Sol…

Campos de um verde álacre, onde zumbem as cores,
Onde transborda a seiva, alegres e felizes:
Sentem-se germinar as raízes e flores,
Na luxúria de Luz dos tropicais países.
Às tardes, cada monte eleva-se sereno,
Na fluida limpidez dos poentes de rosa,
E a paisagem tem um distender ameno
De mulher sensual, fecunda e preguiçosa.
Algarve das paixões, do amor violento,
Que fana, quando passa, as bocas, de desejos;
Aromática terra, onde a asa do vento,
Em vez de ser de ferro, é branda como os beijos…
Terra dos figueirais e das vinhas Formosas
Do luar novelesco, embriagante, albente,
Onde o Sol sensual cansa os nervos das rosas,
Numa volúpia de oiro intensa, absorvente…

Algarve do morghot, dos rostos escondidos,
Das lendas, das visões, das moiras encantadas!
Onde as línguas do Ar murmuram aos ouvidos
Com vocáb`los de sonho, as histórias de fadas…
Encantado jardim fremente de matizes,
Onde a cor dá concerto em sinfonias de oiro,
E onde, sob o solo, as ávidas raízes
Vão às vezes tocar nalgum velho tesoiro…

Costas do meu Algarve, onde é tão terno o mar,
Dum veemente azul em ritmos de veludo,
Com neblinas de prata, ao nascer do luar,
Espumantes de luz, quando o sol cobre tudo…
Costas azuis de sonho, onde os navios parecem
Lírios que vão boiando e voando serenos,
E as velas, correndo, ao longe se esmaecem
E semelham, assim, uns malmequeres pequenos…
Canta suavemente a água, sob as quilhas,
Com um vago rumor, cetinosa e azul,
As líquidas canções, as finas baladilhas
Deste mar sonhador, do meigo mar do Sul.

Como to és diferente, oh mar doce e saudoso,
Oh mar do meu Algarve, enternecido mar,
Do sinistro oceano escuro e ardiloso
Que esmaga os navios para os poder roubar!
Tu nunca, como ele, assassinaste, rindo,
Noivos a viajar, poetas, marinhagem,
Que sonham no convés, quando o luar, subindo,
Risca em prata na água o sulco da viajem…
Tu vais cantar de noite à beira dos moinhos,
Das colinas, dos cais, das praias murmurosas,
Para embalar o sono às aves nos seus ninhos
E para destruir a insónia das rosas…

Quando perto de ti as namoradas choram,
Meu belo aventureiro azul, vais consolá-las;
Por isso, lindo mar, elas tanto te adoram:
Abrem-te o coração, sempre que tu lhes falas…
Tu vais adormecer sobre o barco, cantando,
O pobre pescador cansado de remar…
Pra poderes tornar o seu mais brando;
Nem o barco, sequer, lhe fazes oscilar…
Tu vais fazer vibrar as pequeninas ilhas,
Emergindo de ti, brancas, silenciosas,
Na melodia azul das vagas e das quilhas
E das velas correndo, alvas e luminosas.

Vais fazer latejar, numa glauca harmonia,
As rochas junto a ti erguidas e soldadas,
Meu lindo mar do Sul, oh mar da Fantasia,
Da Aventura, do Amor, da Lenda e das Baladas!
Luar do meu Algarve, imaculado e fino,
Luar fluido, de neve, opalas e jasmins,
Romântico luar, transparente e divino,
Que inundas de Quimera as áleas dos jardins.

Cetinoso luar, querido dos marinheiros,
Luar sentimental do sonho e dos amores,
Que nevas com a luz a água dos ribeiros
E dos lagos azuis deitados entre flores.
Tu vais tecer, de leve, em brancas musselinas,
A baías, o mar: entulhá-los de estrelas;
Romantizas os cais, as ilhas, as colinas,
As curvas dos perfis, o voo ágil das velas.

Vais rolar, sobre a serra e nos vales floridos,
O teu alvo fulgor de mármore e de arminhos:
Tornas os corações bons e compadecidos,
Idílicos; o campo, as estradas, os ninhos…
Negrejantes pinhais vivendo à beira-mar,
Vales sorvendo luz, colinas maceradas,
Silenciosos navios ao longe a navegar
Sobre o trémulo seio das águas desmaiadas.

Toca-vos o clarão evocador da lua
E tendes logo o ar dum sonho desenhado,
Como um fluido véu por sobre vós flutua
Esse pólen da luz, que os mundos tem criado…
Oh sol, vibrante sol, do meu Algarve de oiro,
Que fazes palpitar os peitos e os jardins
No mesmo grande amor, fecundo, imorredoiro,
Que rebenta, na Vida, em olhos e jasmins:
Oh sol que pões no Céu um brilho violento
E fazes chamejar, ao longe, os horizontes;
Que pões fogo no ar e pões brasas no vento
E que vais calcinar a epiderme aos montes:
Adoro a tua luz vigorosa e sadia,
Que moldura no campo a música das cores,
Que rega, em nossa alma, os cactos da Alegria
E esculpe na semente os bustos das flores:
Cai-me sobre o olhar: banha-me em teu fulgor,
Oh sol que pões no Céu um latejante azul:
Dá-me a tua alegria e dá-me o teu vigor,
Oh sol, imortal sol, do meu país do Sul…

Manhãs do meu Algarve, auroras grandiosas,
Abrindo pelo Céu girândolas de cores,
Feitas de seda e oiro e mármores e rosas,
Acordando de manso as sonolentas flores!
V`luptuosas manhãs triunfais e supremas,
Em que o ar não tem mancha, a luz não tem algemas!
Auroras que deixais as montanhas eztáticas,
No triunfal fulgor com que ides inundá-las:
Deslumbrantes manhãs intensas e dramáticas,
Dilúvios de rubis e liquidas opalas!
Plo ar imaculado o vosso oiro palpita,
Como um pólen de luz celeste e fecundante,
Que vem tornar a terra a santa mãe bendita,
Que, sob os astros, gera a vida, a cada instante.

Oh manhãs sobre o mar, vossa frescura trago-a
Dentro do coração e na curva do olhar!
Manhãs, que pareceis incêndios sobre a água,
Quem me dera um pincel pra vos poder pintar!
Oh mar, oh sol, oh noites transparentes,
Campos a burbulhar a seiva que os invade,
Horizontes sem mancha, alvoradas ardentes,
Olhos frescos de amor ensinando a saudade,
Eu amo a vossa cor, o vosso brilho forte,
A fecunda alegria que de vós se evapora;
Detesto a palidez que cobre os céus do norte,
Onde a Cor se desbota e onde a Luz se descora.
Frio encanto polar das montanhas geladas,
Com um sinistro alvor de sepulcral luar,
Alva graça mortal das campinas nevadas,
Que a natureza fez para o cinzel imitar:
O vosso encanto é um encanto de morte,
Vossa beleza é a paralisação:
Oh arte glacial das regiões do norte
Não fazes palpitar jamais o coração!

Natureza imortal, tu que soubeste dar
Ao meu país do sul a larga fantasia,
Que ensinaste aqui as almas a sonhar
Nessa frescura sã da crença e da alegria:
Que inundaste de azul e mergulhaste em oiro
Esta suave terra heróica dos amores,
Que lançaste sobre ela o canto imorredoiro
Que vibra a sinfonia oriental das cores:
Tu que mostraste aqui mais do que em toda a parte
O intenso poder do teu génio fecundo,
Que fizeste este Céu para inspirar a Arte
E lhe deste por isso o melhor sol do mundo:
Ensina algum pintor a fixar nas telas
Este brilho, esta cor, inéditos, diversos,
E põe a mesma luz que chove das estrelas
Na pena que debuxa estes humildes versos.

João Lúcio, em "O Meu Algarve", 1905
(Olhão, 4 de julho de 1880 - 26 de outubro de 1918)

Vim agora da noite

11080752_10200322788068871_1436416245851743355_o.j

 

Vim agora da noite e trouxe tudo:
ela me deu a mão e me ensinou
e eu trago na algibeira as senhas todas.

Agora não há sonhos impossíveis:
não há fruto proibido que eu não coma
nem vagabundo longe que eu não seja
nem cavalo selvagem que não monte
nem navio no mar que não tripule
nem há no mundo porto a que eu não chegue
e bar no porto em que não dance e beba
nem há cidade em que ao sofra tédios
nem selva em que não seja rude e puro
nem há poema belo que eu não pense…

A brisa negra apaga-me a vidraça,
lua e estrelas rasgam-na, ignorando-a,
– sei todas as perguntas e respostas.

Agora não há metas impossíveis:
não há fome a que eu não conheça o pão
nem há sede a que não descubra água
nem virgem morta que eu não ressuscite
nem menino abortado que não crie
nem há vida vazia que eu não encha
nem guerra mundial que não evite
nem salvação do mundo que eu não saiba…

Etc., etc., muitas coisas mais…

Vim agora da noite e trouxe tudo.
Deito-me porque preciso pensar nisso,
tão simples e maravilhoso e nítido,
tão súbito que eu sei e nunca vou
e tombo no cansaço suicida
de a vida não chegar para fazer
tudo isso que a noite me ensinou.

Agora sei porquê e como e quando e quem.
Amanhã de manhã já não me lembro…
mas, amanhã à noite, a noite vem!


Leonel Neves, do livro "Ontem à Noite, Livros Horizonte, 1989
(Faro, 20 de junho de 1921 - Lagos, 6 de setembro de 1996)

Fotografia da Ria de Faro por Pedro Cabeçadas

— com Pedro Cabeçadas.

O tempo

 

14199578_600319046807159_5822337471264239597_n.jpg

 

Apenas quero tempo!
O resto não importa…
Se o futuro bater à minha porta
vou pedir-lhe que espere,
Já fui muito apressada,
desejei viver a vida num só dia,
e com a pressa, perdi-a.
O tempo agora corre, não é nada.
Hoje, só desejo que ele pare,
preciso de tempo p´ra sonhar
e é já tão pouco…
Parar o tempo, desejo louco,
O tempo , não há quem o separe
da rotação da nossa vida.
E resto, desiludida…
Mas não desisto deste querer,
apenas espero por mais tempo,
p´ra viver!

Alcina Viegas
(Tavira)

Fotografia de Diamantino Inácio
(Faro)
— com Diamantino Inácio e Alcina Viegas.

O Sol já se escondeu

14064001_595550303950700_1109439335879304712_n.jpg

 
O Sol já se escondeu...
Precisamente quando,
feliz,
eu desatei a cantar.
(Só por feliz eu cantei.)

Agora quero acabar,
que já me dói a garganta,
mas vou ainda cantando,
temendo
dar por mim de novo triste
assim que esteja calado.
(...Como se a minha Alegria
nascesse de eu ter cantado.)

.
Sebastião da Gama, "Serra-mãe"

Fotografia - Praia da Marinha por Paulo Carvalho Photography

Dia dos fiéis defuntos

 

12185200_486769461495452_2428477739139002937_o.jpg

 

Em menina neste dia dos Fiéis Defuntos
ia com a Mãe e a Tia ao cemitério.
saudar os nossos mortos.
Andávamos de campa em campa
como de casa em casa
a florir-lhes os retratos.
Por mim achava que eles não estavam lá
- e ainda acho.
Mas o cemitério era concorrido como uma feira
e eu gostava de olhar em redor.
Felizmente que os portugueses não fazem como os chineses
que comem ali mesmo com os seus mortos.
Mas no regresso ah sim! compensava-me de tanto luto
empanturrando-me de figos cheios com amêndoas e canela
recém-saídos do forno!
Espero que ainda persista o hábito.
Esse o delicioso paladar que me ficou na lembrança
misturado com o cheiro acre dos crisântemos.
Fecho os olhos, aspiro, saboreio
e assim cumpro hoje o ritual actual
que não inclui a ida ao cemitério
onde sei que os meus mortos não estão:
Tenho-os aqui comigo!

.
Teresa Rita Lopes
(Faro 1937)