Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento. ..
Fernando Pessoa
Mosaico fotográfico feito com fotografias de Pedro Cabeçadas
(Faro)
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Folheia-se o caderno e eis o sul
Isto é uma história muito antiga. Já os meus avós me contavam esta história que era uma história sobre uma lenda de Olhão.
E a história dizia: contavam as pessoas, de Olhão claro, que aparecia um menino num bairro de Olhão. Olhão tinha vários bairros. Na altura era uma vila, uma cidade de pescadores. A esse menino chamavam-lhe Menino dos Olhos Grandes. As pessoas que lá viviam viram uma vez, uma noite à meia-noite, uma criança que se sentava num canto de uma rua sempre com um cesto de verga no braço. Eram pessoas pobres e usavam aqueles cestos. Todas as noites o menino aparecia naquela rua, até que uma noite uma mulher, por curiosidade, foi ao pé dele para ver melhor, para saber quem era aquele menino, que achavam estranho um menino na rua aquela hora. Então a mulher, depois de se aproximar do menino, viu que era um menino pequenino mas que tinha uns olhos muito grandes, e tentou pegar nele mas não conseguiu porque ele era muito pesado. Ela achou estranho mas não pôde fazer nada: o menino não saía do lugar. Então ela começou a passar esta história e a contar às pessoas o que lhe tinha acontecido, e a partir de ai começou a dizer-se que em Olhão havia um menino encantado, porque todas as noites lá estava o menino. As pessoas tentavam pegá-lo mas ninguém conseguia. E por isso, por causa desta história, assim que começava a anoitecer as pessoas tinham medo de sair à rua porque diziam que o menino tinha um encantamento e então tinham medo de ir para a rua, porque até havia pessoas que diziam que por causa do tamanho dos olhos grandes dele, tinham medo. Haviam pessoas que diziam que o menino só de olhar para as pessoas podia matá-las. E então as pessoas, como tinham medo, não iam para a rua.
Diziam as pessoas que o menino não parava de chorar, e os pescadores à noite, quando vinham do mar, pegavam-lhe ao colo com pena. O que acontecia era que o menino começava a pesar muito e os marítimos deixavam-no cair com o peso. Quando caía no chão, desaparecia com se fosse um encantamento.
http://www.lendarium.org/
Fonte Biblio AA. VV., - Arquivo do CEAO (Recolhas Inéditas) Faro,
Fotografia da estátua do "menino dos olhos grandes" em Olhão
Frente a ti, baía de Porto Covo
Se pudesse mudar o mundo
Oscilante geometria tranquila
presença suficiente do ínfimo e do amplo
No centro do tempo não há tempo
Tranquilidade para ir ao encontro de
Estou dentro estou aberto habito
um limpo rosto de desconhecida frescura
(...)
António Ramos Rosa
(Faro, 17 de outubro de 1924 – Lisboa, 23 de setembro de 2013)
Fotografia - Praia dos Arrifes, Albufeira, por Eurídice Cristo
Deus — talvez esteja aqui, neste
A poesia
é um voo de gaivota perdida,
ébria de maresia.
Uma vibração
aquém e além pele repercutida
como se fora uma epifania.
Miguel Afonso Andersen, no livro "Mar de Dentro"
(Portimão)
Há muitos e muitos séculos, antes de Portugal existir e quando o Al-Gharb pertencia aos árabes, reinava em Chelb, a futura Silves, o famoso e jovem rei Ibn-Almundim que nunca tinha conhecido uma derrota. Um dia, entre os prisioneiros de uma batalha, viu a linda Gilda, uma princesa loira de olhos azuis e porte altivo. Impressionado, o rei mouro deu-lhe a liberdade, conquistou-lhe progressivamente a confiança e um dia confessou-lhe o seu amor e pediu-lhe para ser sua mulher. Foram felizes durante algum tempo, mas um dia a bela princesa do Norte caiu doente sem razão aparente. Um velho cativo das terras do Norte pediu para ser recebido pelo desesperado rei e revelou-lhe que a princesa sofria de nostalgia da neve do seu país distante. A solução estava ao alcance do rei mouro, pois bastaria mandar plantar por todo o seu reino muitas amendoeiras que quando florissem as suas brancas flores dariam à princesa a ilusão da neve e ela ficaria curada da sua saudade. Na Primavera seguinte, o rei levou Gilda à janela do terraço do castelo e a princesa sentiu que as suas forças regressavam ao ver aquela visão indiscritível das flores brancas que se estendiam sob o seu olhar. O rei mouro e a princesa viveram longos anos de um intenso amor esperando ansiosos, ano após ano, a Primavera que trazia o maravilhoso espectáculo das amendoeiras em flor.
No meu reino sinto-me rainha,
a coroa é de flor de laranjeira,
cabelos cor de espiga madurinha,
a boca de romã, sorri brejeira...
No meu reino o mar é o senhor,
pode ser guerreiro altivo, com clamor,
ou cavaleiro gentil de mansas ondas
onde me deito,gaiata, sem pudor,
nas brancas , maravilhosas rendas
que enfeitam a areia, seu amor.
No meu reino nem tudo é felicidade,
mas é aquilo que os meus olhos veem,
a luz, a cor, os perfumes, os sabores,
as casas velhinhas, sem idade,
fazem-me esquecer os dissabores,
e comigo apenas guardo a saudade.
Alcina Viegas
5-01-2017
(Tavira)
Fotografia de Jorge Florêncio
Uma gaivota - dizes .
Sim, uma gaivota
passa distante e arde.
O teu rosto é azul,
e contudo está cheio
de oiro da tarde.
Uma gaivota.
Alma do mar e tua,
abandona-se à luz.
E na boca nem eu sei
se me nasce o coração
ou é a lua.
Eugénio de Andrade
Arte - Eleitão Eduardo
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Fernando Pessoa
Fotografia de Faro por Pedro Cabeçadas
Tu não estás como Vitória à proa
Nem abres no extremo do premonitório as tuas asas
Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados
Nem desdobras o teu manto na escultura do vento
Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura
Mas no extremo do premonitório
Em tua pequena capela rouca de silêncio
Imóvel, muda inclinas sobre a prece
O teu rosto feito de madeira e pintado como um barco
O reino dos antigos deuses não resgatou a morte
E buscamos um deus que vença conosco a nossa morte
É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo
Tu sabes que para nós existe sempre
O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
Os deuses de mármore afundam-se no mar
Homens e barcos pressentem o naufrágio
E por isso não caminhas cá fora com o vento
No grande espaço liso da luz branca
Nem habitas no centro da exaltação marinha
O antigo círculo dos deuses deslumbrados
Mas rodeada pela cal dos pátios e dos muros
Assaltada pelo clamor do mar e a veemência do vento
Inclinas o teu rosto
Imóvel muda atenta como antena
Sophia de Mello Breyner Andresen, no livro "Geografia"
Fotografia - Capela Senhora da Rocha por Jorge Florêncio
Muito próximo de Faro existe o leito de um rio, o rio Seco, como lhe chamam as gentes, que é tido e havido como a principal sede de mouros e mouras encantados nos arredores daquela cidade.
No tempo da conquista do Algarve, porém, ainda esse rio corria manso para o oceano, possibilitando a sua utilização plena pelos mouros da região, que, logicamente, o usaram para os seus encantamentos, como vamos ver.
Numa noite de Primavera, dias depois da tomada de Faro, passava um cristão muito perto do hoje chamado rio Seco, quando ouviu umas vozes tristes, num tom manso de quem deseja não ser ouvido.
Era meia-noite e o homem teve medo.
Parou para não fazer restolhada e denunciar-se, e pôs-se à escuta. Daí a nada apercebeu-se que eram dois mouros, um velho e uma rapariga.
Esta estava de joelhos e parecia suplicar qualquer coisa. E ouviu então, distintamente, a voz angustiada do velho dizer:
- Não pode ser, minha filha, não pode ser .. Tens de ficar aqui encantada!
- Mas por muito tempo, pai? - perguntava a rapariga com uma voz que se pressentia entrecortada de lágrimas.
- Até que esta nora, onde mandei construir o teu palácio, seja esgotada a baldes, sucessivamente e sem intervalos.
E ao mesmo tempo que dizia isto fez uns sinais cabalísticos sobre a cabeça da filha, olhando a lua que corria os céus deixando aqui e ali uma poalha fria e brilhante.
E a moça, sem mais palavra, sem um ai sequer, deixou-se lançar ao fundo da nora. Tão concentrado estava o cristão no que se passava na nora, tentando perceber bem o que acontecia à moura, que nem deu pelo afastamento do velho.
Por isso, quando quis segui-lo, não o viu nem conseguiu determinar qual a direção que seguira.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que o cristão fez foi voltar ao local da cena da noite anterior.
Viu então que a nora era já um engenho velho e usado, com ar de abandonado há muito.
Tratou de saber a quem pertencia engenho e terreno e comprou-os sem regatear preço.
Mandou construir, mesmo ao lado, uma cabana de junco e mobilou-a com alguns móveis.
Passado o tempo necessário aos preparativos, o homem começou a tirar a água da nora, com o auxílio de um grande balde e de um sistema de roldanas.
Trabalhou naquela faina dia e noite, horas infindas, sem parar.
E quando a água do fundo era tão pouca que nem dava já para encher um balde, desceu pela corda até lá abaixo.
Porém, assim que assentou os pés no fundo, apareceu-lhe uma enorme serpente, vinda de um buraco que comunicava para a nora.
Ficou tão aterrado, tão cheio de um pânico sem nome, que nem tratou de saber as intenções do bicho e subiu precipitadamente pela corda, fugindo a sete pés.
Nunca mais lá tornou, mas, dias depois, soube que a nora estava completamente entupida devido à derrocada das paredes, e que a cabana por ele construída fora queimada inexplicavelmente, em certa noite de luar.
Daí em diante, até hoje, fala-se no aparecimento de uma moura encantada naquele lugar do rio Seco.
http://
Fotografia do Rio Seco em Faro
Vai frio o janeiro, vai ventoso e frio.
De muitas maneiras, de fio a pavio,
Me fugiu a sorte, sem pena e sem dó,
No Ano findado, que Deus já levou.
Eu gosto da vida, mas nem sempre só.
Não vou me queixar, porque o rio secou,
Mas pena eu tenho das asas partidas,
Dos sonhos roubados por almas impuras,
Que forças me deram, mas foram perdidas
No salto que dei pra chegar às alturas.
O motor das guerras é sempre o dinheiro,
Poder e ganância, que são crueldades.
Das lutas da vida, eu sou prisioneiro
E a feira do mundo só vende vaidades.
Faro, 05-01-2017
Tito Olívio
Fotografia de Jose Manuel Guerreiro Guerreiro
A luz
apaga todas as arestas
Aviva a Cal
que cobre os habitáculos
O silêncio regressa
das entranhas do mar
Josefa de Lima, em “Pulsações” - 2008
(Vila Real de Santo António)
Fotografia - Faro década de 50\60 por Artur Pastor
Nos mastros os rastros do vento
Ou o grito no azul do mar
Desfazendo as arestas do horizonte.
Fernando Reis Luís
Fotografia de Olhão década de 50\60 por Artur Pastor
Toca-vos o clarão evocador da lua
E tendes logo o ar dum sonho desenhado,
Como um fluido véu por sobre vós flutua
Esse pólen da luz, que os mundos tem criado…
João Lúcio, (O Meu Algarve, 1905)
Fotografia de Diamantino Inácio
Meu Norte interior, evanescente
O Alentejo lembra-me sempre
Um imenso relógio de sol
Onde o homem faz de ponteiro do tempo
Miguel Torga
Arte - Alentejo com papaoilas por Salvação Barreto
Ouvi o meu tempo no som dos restolhos
Que beijam encostas da terra de mim.
Depois, encontrei pedaços, sem fim,
Da serra que foi meu vestido de folhos.
.
Os ventos levaram antigos abrolhos,
Ficaram as urzes com tons de carmim
E beijos perdidos, dançando em festim,
Por entre a folhagem que abriga meus olhos.
.
E tudo na vida tem hora marcada,
Os sonhos submergem da terra lavrada
Ao som da memória que invade a distância.
.
Ouvi o meu tempo, calquei os meus ais
Na base da serra que foi de meus pais
E guarda, em sacrário, meus ecos de infância.
Glória Marreiros
(Monchique)
Fotografia de Monchique por Isaura Almeida
Discreto,
1984
Quando a noite chegava, levava o banquinho para a porta da rua e, enquanto a avó acabava uma camisola para o seu tio Miguel, que andava na tropa, entretinha-se a embalar a sua Nila. Era assim que se chamava aquela boneca de trapos, da qual gostava tanto! - feita pela avó e pela avó deixada na botinha em cima do fogão, numa noite de Natal. Quanto tempo já passara.. mas como todos nós, ela também tinha recordações e com elas se aproximava da infância, quando queria. Nesse tempo já esfumado, o Natal enchia-a de interrogações e de espanto…
Um dia arranjou coragem e resolveu descobrir o segredo do Natal. Queria ver com os seus olhos o Menino Jesus, - e quem o não quer? Já de camisinha de alças… não se lembrava do pijama de flanela, estampado… comprado na feira, mas da camisinha de alças que quase sempre lhe cobria a nudez, devido à doçura do clima. Pronta para se deitar, trepou pela cadeira alta e apertou a torcida do candeeiro a petróleo - colocado sobre a meia-lua da mesa redonda da sala comum, ficando, assim, com menos luz. Na memória não aparece ninguém. Como pode ignorar a avó e o avô? Certo, certo, é que saltou para a grande cama e ali ficou, de olhos muito abertos para espantar o sono. A avó, - agora, sim, veio junto dela para lhe aconchegar a manta e com ela rezar.
“Padre Nosso pequenino
Quando Deus era Menino
Pôs o pé no seu altar
Com o sanguinho a pingar
É já a Noite Santa
Já o galo se levanta
Já Jesus subiu à cruz
Para sempre
Ámen Jesus”
E como ainda se mostrasse com espertina, a avó lá prosseguiu:
“Cruz em monte
Cruz em fonte
Que o pecado
Não me encontre
Nem de noite
Nem de dia
Padre Nosso
Ave Maria”
Talvez mais uma reza, e a sua mocinha pegasse no sono.
“Anjo da Guarda
Minha companhia
Guardai minha alma
De noite e de dia”
“Não quero dormir", - dizia para si própria, tentando vislumbrar pelas pestanas entreabertas, agarrafa de vidro azul com florinhas brancas em relevo. “ Quero ver o Menino Jesus! Os olhos, habitando-se à penumbra, iam contornando os cálices de igual cor. Porém, mal a avó virou costas, levantou-se de mansinho e, pé ante pé, deu com ela própria a atravessar as cortinas de cretone florido, colocadas como barreira de divisões mais íntimas. Já na cozinha, à direita, o poial de pedra e sobre ele, em repouso, a grande talha de barro vidrado com uma torneira centrada no bojudo ventre. O que teria dentro? Água? Não! - tinham-na canalizada. Azeite? Tremoços? Carne de porco salgada? Atum? Talvez fosse um depósito para a água, em dias de falta! Talvez, quem
sabe? Ou fosse para tudo ou fosse para nada, sabia lá!
Josefa de Lima, em "O Casapiano"
Já tive belos Natais
Pinheiros de fantasia
Muitas loiças e cristais
Muita, muita alegria
Muitas festas e vestidos
Muitas rendas, muitos laços
Já tive muitos sorrisos
Muitos beijos e abraços
Mil frutas, bombons e passas
Rosas brancas e um jasmim
Cem melodiosas valsas
Todas valsadas por mim
Tive cordas e palhaços
Que me faziam sorrir
Lindas bonecas de trapos
Um Pierrô e um Arlequim
Este Natal já não tem
Pinheiros de fantasia
Nem prendas, nem alegria
Nem carinhos de ninguém
Adeus festas e vestidos
Beijos e abraços amigos
Bonequinhas e palhaços
Meus Natais, Natais antigos
Nunca sereis esquecidos
Adeus rendas, adeus laços
Josefa de Lima, em "Meus Versos Rimados"
(Vila Real de Santo António)
Podíamos ter sido tão felizes!
Caminha o Novo Ano tão depressa.
A festa já o espera em plena rua.
O fogo-de-artifício esconde a lua
e deixa a natureza quase avessa.
Há copos tilintando na travessa
da vida, que se apraz e não recua.
Os brindes são silêncio que acentua
os laivos de alegria e de promessa.
Folias que se avultam neste povo,
que gasta o que não tem, por algo novo,
na busca de encontrar uma vitória.
Sozinho vai partir o Ano Velho.
Ninguém escuta já o seu conselho,
Que os velhos, para os novos, são história.
Glória Marreiros
(Monchique)
Fotografia - Serpa por Ricardo Zambujo
Fiquei preso nos aros dum abraço,
Na forja dum fogacho sem ter lume.
Nem sempre é preciso ir ao cume
Pra atar o mundo todo em nosso laço.
A vista, lá de cima, perde o traço
E o ar da tarde fria tem perfume.
Se quero ver se o mar me dá cardume,
Não vou subir ao alto, lá no espaço.
Pensar, tal como sente o coração,
É dar salto sem asas do avião,
Que o chão é duro e parte-se o nariz.
É bom ter pés na terra e olho aberto
E pôr o nosso barco em rumo certo
Pra termos fim de vida mais feliz.
Faro, 02-12-2016
Tito Olívio
Fotografia da página Portimão, Você Está Aqui