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RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Existe um mar

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Existe um mar
em cada um de nós.

Um mar interior,
mar de dentro.

Porção de água,
nível de bolha, lastro
diário de bordo,
sextante, gávea em alto mastro.

Ancoradouro,
mar de recolha e de recolhimento.
Mar de ser e estar.

Vaga-lume, vaga, maresia
vento, velame e cata-vento
no bombordo-estibordo
do marear de cada dia.

Miguel Afonso Andersen, no livro "Mar de Dentro"

Fotografia de Portimão por Filipe Santos Photography/Fotografia

O silêncio

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O silêncio é agora a minha fala.
Escrevo-o nas linhas rasgadas a céu aberto
com um archote de palavras
da chama ténue, quase ausente.

De pena e aparo em riste
como o dardo curvo e breve
do que sente,
silencioso e triste
o poeta não se ilude.

Ele é a própria ilusão,
do que em silêncio escreve.

Miguel Afonso Andersen, em "Mar de Dentro"
(Portimão)

Fotografia - Ria Formosa por Martyna Mazurek fotografia

 

Gosto do Inverno e do mar

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Gosto do Inverno e do mar.

Da água alterada em espuma
fustigando os pontões do tempo.

Da memória,
da infância
agreste e fria como um vento
assíduo e persistente,

desse afago coado da brisa matinal
uma poeira húmida que se pressente
mas não se sente,
afinal
como toda a carícia irreal
que a memória não consente.

Gosto do Inverno e do mar.

Gosto do mar e do Inverno
num gostar por dentro do não gostar
como quem busca todas as achas do inferno
para nelas, inutilmente, se imolar.

Miguel Afonso Andersen, em "O início das águas"
(Portimão)

Fotografia de Jorge Florêncio

Hoje quero escrever

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Hoje quero escrever
não pelo talhe doce do recorte oblíquo
da forma redonda e quase perfeita da palavra,
tal como o poema me pede.
mas pela irregularidade agreste
da sua mais viva e gritante aresta.

Escrever
com verbos cortantes como lâminas
forjadas na raiva destemperada,
afiadas no silício mais rubro e abrasivo da vergonha.

Pode alguém descrever o belo
quando sente o peito esmagado pelo desespero
espelhado nos olhos de tantos refugiados e náufragos
em busca do sol e do sal da vida?

Pode alguém escrever um hino ao amor
quando nos olhos sente inflamado
o volume inerte, falecido duma criança
emborcado na espuma do areal?

Na ignomínia deste dia a dia,
pergunto; para que me serve a poesia?

Miguel Afonso Andersen, no livro "Mar de Dentro"

Vítor Laranjeiro Photography

Sempre as palavras

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Sempre as palavras
só as palavras,

esses corcéis
de vento e espuma
velozes como um açoite,
moldáveis como barro
duras como granito,

no trote
marcado na fímbria e no grito
de cada noite,

no galope
solitário pela margem silvestre
do pomar silábico da língua.

O relinchar agreste
da estrofe à beira da falésia e da fala.

Sempre as palavras, só as palavras
forjam de noite e de dia
o metal e o ritmo
mais puro da poesia.

Miguel Afonso Andersen, no livro "Mar de Dentro"

Fotografia - Sagres, Vila do Bispo, por Vitor Pina

— com Miguel Afonso Andersen, Vitor Pina - Photography,

Sou daqui

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Bichos somos de um certo chão
o único
em que nossos passos encontram seu verdadeiro
sítio e som e ritmo
e nossos sentidos desabrocham
suas mais íntimas pétalas.
Sou daqui. Só aqui pertenço
aos três reinos da Natureza simultaneamente. Sei que
fomos originariamente pó de estrelas
mas só as estrelas algarvias me reconhecem :
piscam-me o olho e pestanejam com fulgor.
Sou filha do casamento da terra com o mar.
Meus olhos não sabem viver sem uma paisagem de água
e meu corpo precisa de assentar neste chão
de aqui vir
ritualmente acertar-se com esse sopro interior a que
chamamos alma.
No exílio reinventei com palavras
todos os sítios em que nasci e cresci
e agora são mais meus
porque assim os dei de novo à luz.
Meus deuses são morenos
como a terra e têm olhos de mar
como eu.
Um dia encontrei um na praia todo nu com um camaleão
no ombro e fugi.
Às vezes são venerados como santos
nas igrejas:
vestem-lhes a esplendorosa nudez
e dão-lhes nomes cristãos e tarefas a cumprir:
a de curar os olhos
ou os ossos ou a garganta
e há também um que protege
os animais.
Têm à volta bonecos de cera com a forma das partes
do corpo ou dos bichos que curaram.
Mas nas noites
de lua cheia fogem do bafio dos altares para o ar livre
e alegremente convivem com os deuses não domesticados
que continuam a viver à solta como bichos vadios
e juntos
cortejam as mouras encantadas que se evadem de suas cisternas
e ficam com eles a namorar
até de madrugada.

Mar salgado

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Sou filha do mar salgado!
Ando presa numa rede
de que me vou libertar
quando passar esta sede
que tenho de tanto amar.
Tenho nas mãos um arado
que uso para abrir regos,
e depositar sementes
que me darão o meu pão.
Os meus olhos são segredos
onde restam meus caminhos
que vou caminhando em vão.
Sou filha do mar salgado!
No coração tenho o som
de marés adivinhadas
quando em longas madrugadas
recordo o mar e o chão
que tenho no coração.

Alcina Viegas
( Tavira)

Fotografia de Filipe da Palma
(Portimão)

Na rota das gaivotas

 

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Na rota das gaivotas há linhas cruzadas
nos voos bisados da proa à popa
Há um frémito incessante
Há gritos estridentes
no lançar e recolher das redes…
são homens são aves
unidos no parto do mar esventrado
cegos de espuma e de sal

longa é a espera…

dobram-se corpos preces promessas
e a água ensopa o coração das aves
e escorre das penas dos homens

num instante tudo muda
e pinta-se o mar de luar
mergulham gaivotas a pique
trazendo no bico a fartura...
- quanta exúvia cintila
no rasto da traineira -

morre por fim a angústia à beira-mar
e no olhar dos homens e das aves
o alvorecer do retorno
e a paz da saciedade

- na praia a lota a repartir
pelas bocas esfaimadas
de quantas marés fracassadas

Josefa Lima, no livro “Na Rota das Gaivotas”

Fotografia de Jorge Florêncio

O gesto e o resto

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Tudo tão perecível, tudo tão
Frágil, tão efémero
E, no entanto,
Tudo tão perto do eterno.

Juntamo-nos as mãos como quem busca
No acto de as juntar,
A certeza das coisas com que nunca
Poderá contar.

E é tão simples o gesto
Que esquecemos o resto.

Torquato da Luz, em "Destino do Mar"
(Alcantarilha, Silves, 1943 - Lisboa, 2013)

Arte - Clara Andrade
(Portimão)

Mar Português

 

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Ó mar salgado. quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quanos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, "Mensagem"

Fotografia - Molhe de Ferragudo (Algarve), por Vitor Pina
 

Falemos

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Falemos então de todas essas coisas a que nunca soubemos dar um nome.
Coisas como café e cerejas,
coisas como memórias do verão de ontem
e de tudo o que repousa já no ónix frio dos dias.
falemos não porque as vejamos,
porque as sentimos à vaga luz dos crepúsculos que morrem
e são para nós as florestas que passam velozes nos vidros do carro
e os silêncios dos faunos que atravessam os bosques e as ilusões
e as pequenas ondas que vêm desmaiar à praia
e as vozes antigas que ainda nos falam na alma coisas despercebidas
e as luas que havia no final do verão.
Falemos, para que de novo sejam
e de novo vivam.

Falemos, para que estejamos vivos.

Fernando Cabrita, do livro "Doze Poemas de Saudade", 4 Águas editora, 2008
(O poeta algarvio Fernando Cabrita foi o vencedor da edição portuguesa do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2010)

Fotografia de Pedro Cabeçadas
(Faro)

 

A lenda das amendoeiras

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Dizem que, num certo dia
A flor da amendoeira
Surgiu na terra algarvia
Desta bizarra maneira:

Quando esta província linda.
De tão nobre e alta fama,
(Há já muito!...) estava ainda
Sob jugo da moirama.

Era então o rei dos moiros
um mancebo de olhos belos,
Que tinha muitos castelos,
Fartas terras e tesoiros.

Era audaz e muito forte
esse filho do Alcorão;
Mas, certa vez, veio do norte
Combatê-lo, um rei Cristão.

Trazia, em navios de guerra,
armas e homens sem conta
Que encheram a nossa terra
De lutas, de ponta a ponta!

Mas dessas pugnas cruéis
Plenas de sangue e horror,
Foi o rei dos infiéis
Finalmente o vencedor...

Quando os cristãos debandaram
Após e inútil empresa,
Entre os cativos, deixaram
Gilda, uma linda princesa...

Da cor do céu os seus olhos
Tinham raios de sol no fundo;
Eram fios de oiro, os cabelos;
Um morango maduro, a sua boca;

E a medida dos pés era tão pouca
Que tão mimosos, no mundo
Ninguém poderia tê-los!

De corpo airoso, de junco. As mãos, espuma
Branca do mar. E o seio, erguido,
Duas albentes luas a nascer,
Ou duas pombas cativas, cada uma
Pelo seu lado debicando, a querer
Fugir da prisão leve do vestido....

E já se fica a saber
Que outro enlevo igual a isto,
Nunca ninguém tinha visto
Nem nunca havia de ver...

Por isso, quando calhou
A olhar a nobre donzela,
O rei dos moiros ficou
Enfeitiçado por ela....

Também a jovem, na frente
Desse forte e belo moço,
Sentiu um novo alvoroço
Dentro do peito inocente...

E em breve, nas terras todas
Do Algarve, em grande afã,
Se festejavam as bodas
Do rei moiro e da cristã!

Porém, uns tempos passados
Apareceu a princesa
com os olhos ensombrados
por uma funda tristeza...

De tão estranha doença
Ninguém sabia o segredo;
Era uma tortura intensa,
Coisa de cisma ou bruxedo...

Mas a princesa infeliz
Contou ao rei a verdade:
-Que morria de saudade
Da neve do deu país....

E o moço, então,com fervor,
À esposa fez uma jura:
Mostrar-lhe o seu reino em flor,
Da cor da neve mais pura!

Vieram do fim do mundo
Umas árvores singelas
Que, neste solo fecundo
Cresceram, fartas e belas...

E certo Inverno surgiu
em que, qual sonho ou magia,
Toda a terra se cobriu
da flor da neve algarvia...

João Braz Machado, do livro "Esta riqueza que o Senhor me deu"
(poeta - jornalista e escritor, São Brás de Alportel, 13 de março de 1912 - Portimão, 22 de junho de 1993)

Fotografia - postal ilustrado - amendoeiras em flor no Algarve

 

Lenda dos três irmãos de Alvor


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Corre entre o povo de Alvor que os três pequenos rochedos localizados na Praia dos Três Irmãos, em Alvor, simbolizam três irmãos pescadores que apanhados inesperadamente no meio de uma tremenda tempestade. Soçobraram e faleceram sem qualquer auxílio da Providência Divina, ficando petrificados.
E aqui a memória dos tempos apagou uma parcela do discurso bastante importante para a compreensão do fenómeno.
Por que teriam ficado petrificados?
Por que não foram socorridos pela Divina Providência?
Alguns atribuem esse facto a promessas não cumpridas pelos familiares, em terra, na praia no ato do salvamento.
E eis o que nos resta desta lenda cuja narrativa se tem perdido nas memórias ao longo dos tempos.

Fonte Biblio TENGARRINHA, Margarida Da Memória do Povo Lisboa, Colibri, 1999 , p.66-67 \ “Arquivo português de lendas” – “narrativas”
(Através de Raul Alvito)

Fotografia - Praia dos 3 Irmãos, Alvor-Algarve, por Bruno Palma Bruno Palma Fotografía

 

Lenda do Rio Arade



Rio Arade, rio Arade,
Diz a voz da tradição
Que uma moira aqui chorou,
Trazida por Rei Cristão...

Foi em tempos tão remotos,
Em tempos que já lá vão,
Que a luta era mais acesa
Entre a Cruz e o Alcorão...

Era tudo fogo e ferro,
Em chamas ardia o chão,
E, a blasfêmia proclamada,
Carecia de perdão...

E se Cristo alçava a cruz
Aos valentes portugueses,
Aláah, de longe, incitava
Os moiros, algumas vezes...

Os dias assim passavam,
Tão negros, sem exagero,
Que nada ali mais se ouvia
Que as vozes do desespero...

Quebravam-se alfanjes moiros,
Duras lanças portuguesas,
Nesses combates hostis,
Pelos montes, por devesas...

E diz a lenda, ela sempre,
Que o sangue que o chão bebia
Numa fonte mais à frente,
Muitas vezes, apar’cia...

É por isso que ainda hoje,
Até por gosto bizarro,
Se apanho terra de Silves,
É vermelha, cor de barro...

Vamos ao que mais importa
Nesta longa narração:
Saber o que aconteceu
À moira e ao rei cristão...

Era um dia, ao sol poente
Brilhavam núvens nos céus,
E El-Rei das hostes cristãs
Rezava, sózinho, a Deus.

Senão quando, senão quando
Junto de si apar’ceu
Uma visão, a mais linda,
Vinda lá dum outro céu.

Pronto El-Rei ali quedou
A fervorosa oração;
Logo, também, inquiriu:
— “Quem és tu, aparição?...

— “Eu sou Fhatma, a engeitada;
“Não tenho pai, nem irmãos,
“E assim me dou, pura e virgem,
“Ao forte Rei dos cristãos...

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Levou-a El-Rei consigo,
Na garupa do cavalo;
Prestes, dela se tomou,
Não seu Rei, mas seu Vassalo...

E, numa curva do rio,
Num lugar que é Encherim,
Entre flores de laranjeira,
El-Rei lhe falou assim:

— “Tu és flor ou és mulher?...
“És verdade ou tentação?...
“Tu, que és moira, quer’s ficar
“Aqui no meu coração?.,,

Era a moira só ternura,
E sorria como ainda
O guerreiro outra não vira
Sorrir, morena e tão linda...

Mas Fhatma ali respondeu:
— Sou mulher, mas, se me queres,
Sou só tua, apenas tua;
‘Faz de mim quanto quiseres!...

Abraços assim e beijos
Não foram jamais trocados,
Nos tempos vindos depois,
Nem nos tempos já passados...

Porque o amor não era amor,
Era coisa tão sem nome,
Como a água que mata a sede
Ou o pão que mata a fome.

Foi-se El-Rei de novo à guerra
E a princesa, porque o era,
Ficou-se, naquele vale,
Sempre à espera, sempre à espera...

Passaram tempos vindouros,
Longa noite, longo dia,
Mas El-Rei não mais voltou
Para ver quem não o via...

E a moira que filha fora
Do príncipe Ben Ahr-ade,
Foi-se, a pouco, ali finando,
Só chorando de saudade...

Lágrimas do céu bebia,
Nas longas noites chuvosas,
Para as transformar, depois,
Noutras bem mais copiosas...

Eis, assim, foi engrossando
Aquela magra ribeira,
Onde a moira se quedara,
Mais chorosa, à sua beira...

Os tempos foram passando,
Mas a ribeira era agora
Um rio que ia morrer
Noutras águas, mar em fora...

Logo o vulgo, sempre o vulgo,
Depois, para a eternidade,
Ali mesmo baptizou
O rio, de Rio Arade...

Por isso, nos meus ouvidos,
Em longas noites de v’rão,
Ainda ouço alguém cantar
Aquela estranha canção:

— “Rio Arade, Rio Arade,
“Diz a voz da tradição
“Que uma moira aqui chorou,
“Trazida por Rei Cristão...

LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas
Extraído do blog "Ar-ribat”

Fotografia - Barra do Rio Arade por Carlos Fino Figueiras

Meu canto velhinho


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Eu canto à serra algarvia
Canto à flor de amendoeira
Canto ao mar, canto à ria
Canto à casa, à lareira…

Eu canto à minha maneira
Como canta o passarinho
Ao Algarve, à terra inteira
Canto com muito carinho!

Eu canto às ondas do mar
Ao castelo, à bandeira
Canto à Pátria, canto ao lar
Canto à terra hospitaleira!

Canto à Poesia, aos poetas
E canto ao meu povo amigo
Canto também aos profetas
E ao bom Deus que bendigo!

Canto ao livro onde aprendi
O mais belo abecedário
E canto porque senti
Nos livros um relicário!

E canto neste fadário
As lições do dia a dia
Nas letras do meu diário
Na minha Pedagogia!

Maria José Fraqueza
(Fuzeta - Faro)

Mosaico fotográfico criado pela página RUMO AO SUL