Diz a tradição antiga,
Que é a voz do nosso Povo,
Que, ao rumor duma cantiga,
O que é velho é sempre novo.
Só por isso, eu vou narrar
O que alguém a mim contou,
Numa noite de luar
Que há muito tempo passou:
— Neste chão, aqui sagrado,
Nasceu, viveu e morreu,
Num outro tempo passado
A mulher que o nome deu
A esta aldeia tão linda,
Que por mim já foi cantada
Naquela trova que ainda
Por ninguém foi publicada.
Mas a moira, que era moira,
Antes de morrer, amou,
Porque sendo casadoira,
Seu pai a tal obrigou.
Isto dos pais terem mando,
Como tinham, nessas eras,
Sobre o amor tão doce e brando
Das filhas, se das esferas
Allah assim o mandava,
Não era o que mais convinha
Nem o que mais agradava
A tais perfis de andorinha,
Porque a moira era mulher
E tinha, assim, coração
Que não dava a um qualquer,
Moiro que fosse ou cristão.
Esta é pois a história triste
De Zhara, por ter amado,
Não alguém de alfange em riste,
Mas um valente soldado
Das duras hostes cristãs,
Que se batia, sem medo,
Pelas tardes e manhãs,
Naquela terra, em segredo.
Mas, quando a luta deixava
Ao seu corpo algum descanso,
Logo ali vinha e cantava,
Aprazível, tão de manso:
“Tu és Zhara, eu sou cristão,
“És mulher, eu homem sou,
“E o meu doce coração,
“Se o quiser’s, a ti o dou.
“Levas-me, com ele, a vida,
“O meu corpo, os meus tormentos,
“Mas tu serás, minha qu’rida,
“Dona dos meus pensamentos.
“E hás-de ser, sou eu que o juro,
“Minha Senhora e Rainha
“Do meu Povo, assim espero,
“Nessa terra que é só minha”.
E Zhara, então, apar’cia,
Ao alto brilhava a lua,
E docemente dizia:
“Vem ter comigo, sou tua.
“Depois que o sol dê três voltas,
“Ao redor daquele outeiro,
“Transporta-me, a rédeas soltas,
“Meu valente cavaleiro”.
Esperou El-Rei cristão,
— Porque de facto era Rei —,
Que o tempo passasse então
Mais depressa do que a Lei,
Que é tarda sempre a passar,
Em qualquer ocasião,
Porque ninguém quer esp’rar,
Quando julga ter razão.
Porém, foi chegado o dia
Que Zhara tinha marcado;
Cantava ali, de alegria,
Um canário apaixonado.
Por entre as urzes dos montes,
Caminhava a moira linda,
E sorria para as fontes
Como o não fez ainda
Outra mulher, depois dela,
Que até a lua sorria
Naquela noite tão bela,
Invejando a luz do dia.
No cimo daquele outeiro
El-Rei ao Senhor rezava,
Porque o seu amor primeiro
Não apar’cia e tardava.
Mas, na volta dum caminho,
Branca, qual aparição,
Vestida toda de arminho,
Zhara se mostrou então.
Mas não deu um passo mais,
Porque Allah, um deus remoto,
Mandou chuvas, temporais,
E, depois, um terramoto.
Tudo foi posto por terra,
Tudo ali foi arrasado;
Só não acabou a guerra
Que um pouco tinha parado.
Continuaram dirimindo
Moiros e gentes cristãs,
À dura luta sorrindo,
Dia e noite e pias manhãs.
Mas se a batalha parava,
Por pouco tempo que fosse,
Quem o quisesse escutava
Um falar assim tão doce:
— Mulher que p’ra sempre amei,
“Indif’rente à dor e aos ais,
“Eu te busco e buscarei,
“Moira Zhara aonde estais?”
E perto, do fundo chão,
Num cicio claro e quente,
Alguém respondia, então,
Docemente, docemente:
— “A luz nos deram por finda,
‘P’ra que foi e porque foi?
“Mas, se tu me vês ainda,
‘Aqui ‘stoy, aqui estoy...”
A fala se repetiu,
Longo tempo, longos anos;
E de tal modo se ouviu,
Sem mais letras, nem enganos,
Que o Povo deu de chamar,
Como benção redentora,
A este mártir lugar,
ESTOI, pelo tempo fora...
Fonte Biblio LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.81-86
Fotografia
de Estoi por Isaura Almeida