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RUMO AO SUL

RUMO AO SUL

Talvez ninguém procure o fundo de si mesmo

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Talvez ninguém procure o fundo de si mesmo
ou porque não existe ou porque é inacessivel
A palavra não revela apenas anuncia ou apenas pressente
um espaço sem caminho uma asa comprimida no mármore

Talvez nunca possamos colher mais do que uma simples erva
junto a um muro para preencher o vazio do dia
Assim poderemos esquecer que tudo é surdo
e ocupar um espaço que não pertence ao mundo

O mundo ignora-nos como se os seus caminhos não fossem para nós
mas o poema acaricia o rigor do solo
e alheia-se de tudo que não seja a carne íntima
do seu movimento entre raízes e antenas

António Ramos Rosa, em "As Palavras" (2001)

Fotografia - Algarve (Cacela) por Filipe Da Palma

 

O nosso olhar

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O nosso olhar não tem fronteiras ou estações
não é uma arma que dispara um tiro
imediatamente o espaço é a inocência do seu dom
ao sol e na sombra a sua projecção imperceptível

Para uma longínqua estrela uma árvore ou uma flor no chão
não necessita de uma medida as distâncias equivalem-se
o olhar não nos pertence como um instrumento ou um meio
a sua límpida visão vem de uma obscura esfera
e no seu átrio o ponto de partida não é o ponto
mas a abertura imediata que nos projecta no espaço
imperceptivelmente numa visão de um instante
e o visível é a evidência do real
de um fascínio de qualidades puras
de surpresa em surpresa de cores formas e tons
respirados pelo corpo na sua mais ampla latitude

António Ramos Rosa
(Faro, 17 de outubro de 1924 – Lisboa, 23 de setembro de 2013)

Fotografia de Filipe da Palma
(Portimão)

— com Filipe Da Palma.

O que faço melhor é contemplar

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O que faço melhor é contemplar
e contemplo mal — o cristal dos meus olhos
está cansado e o sopro matinal que tanto prazer
me deu desprende-se já do corpo que julguei meu.
Pouco a pouco, contemplando as árvores
e os seus frutos, as aves e as suas plumas,
o mar e as deusas que nele repousam
aprendi que não há regresso. Ouço, palpo,
não espero nada. As nuvens navegam brancas
nos rios; as águas alimentam fauna e flora; o gato,
caçador sentado, assiste ao encontro adiado
das águas e da sede. O que faço melhor
é contemplar o paraíso que vai nascendo.

Foto de Casimiro de Brito, do livro "Amar a vida inteira"
(Loulé)

Fotografia - Praia da Marinha por Leos Photos

 

Se o teu ouvido se fechou à minha boca

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Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.

Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.

Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

Casimiro de Brito
(Loulé - Algarve, 14 de janeiro de 1938)

Arte - António Tavares

 

Pedras que piso


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Não sei as pedras que piso
Na vereda agreste
Mas sei o rumo que sigo

Não sei onde me leva o vale
Nas suas águas bravas
Mas sei que é para o mar

Não sei aonde me leva o grito
Na sua ressonância breve
Mas sei que ecoará nas montanhas

Não sei quem sou
Não sei como cheguei aqui
Mas sei que habitarei este chão
Como as pedras que piso.

Fernando Reis Luís, em “Pastor & Ventos”
(Monchique)

Fotografia de Monchique por Martyna Mazurek fotografia

 

Tudo será construído no silêncio

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Tudo será construído no silêncio, pela força do silêncio.Tudo será construído no silêncio, pela força do silêncio, mas o pilar mais forte da construção será uma palavra. Tão viva e densa como o silêncio e que, nascida do silêncio, ao silêncio conduzirá.

António Ramos Rosa
(Faro, 17 de outubro de 1924 – Lisboa, 23 de setembro de 2013)

Mosaico fotográfico de Filipe Da Palma
— com Filipe Da Palma.

Andava um dia...

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Andava um dia
Em pequenino
Nos arredores
De Nazaré,
Em companhia
De São José,
O bom Jesus,
O Deus Menino.

Eis senão quando
Vê num silvado
Andar piando
Arrepiado
E esvoaçando
Um rouxinol,
Que uma serpente
De olhar de luz
Resplandecente
Como a do Sol,
E penetrante
Como diamante,
Tinha atraído,
Tinha encantado.
Jesus, doído
Do desgraçado
Do passarinho,
Sai do caminho,
Corre apressado,
Quebra o encanto,
Foge a serpente,
E de repente
O pobrezinho,
Salvo e contente,
Rompe num canto
Tão requebrado,
Ou antes pranto
Tão soluçado,
Tão repassado
De gratidão,
De uma alegria,
Uma expansão,
Uma veemência,
Uma expressão,
Uma cadência,
Que comovia
O coração!
Jesus caminha
No seu passeio,
E a avezinha
Continuando
No seu gorjeio
Enquanto o via;
De vez em quando
Lá lhe passava
A dianteira
E mal poisava,
Não afroixava
Nem repetia,
Que redobrava
De melodia!

Assim foi indo
E foi seguindo.
De tal maneira,
Que noite e dia
Numa palmeira,
Que havia perto
Donde morava
Nosso Senhor
Em pequenino
(Era já certo)
Ela lá estava
A pobre ave
Cantando o hino
Terno e suave
Do seu amor
Ao Salvador!

João de Deus
 

Tarde de leite e rosas

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Tarde de leite e rosas. Cada aresta
Tinha um rubi tremente:
Fomos ouvir o canto da floresta,
O seu canto de amor, ao sol-poente.

.
Tu querias sorver os poderosos
Lamentos de saudade e comoção
Que as raízes, dos fundos tenebrosos,
Mandavam, pelo ramo, para o chão.

.
Opalescera já, o ar. O vento,
Correndo atrás da sombra, murmurou...
Sentiu-se um fechar de asas. Num momento
A floresta cantou.

.
Em cada ramo um violino havia;
Cada folha vibrava ágil, sonora,
Par'cendo que escondia uma harmonia
Nas sombras das ramagens, a Aurora.

.
Como a floresta, meu amor, eu tento
Atirar o meu canto para a altura:
Para a fazer cantar, toca-lhe o vento,
Pra me fazer cantar, no pensamento,
Passa o sopro da tua formosura.

.
João Lúcio

Fotografia de Pedro Cabeçadas

Doces Algarvios

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A gastronomia algarvia remonta aos tempos históricos da presença romana e árabe e as amendoeiras algarvias dão o fruto de que se fazem os doces da região como os morgadinhos, os frutinhos, os queijinhos entre outros.

DOCE FINO

Coloridos e saborosos estes bolinhos de massapão são absolutamente icónicos na doçaria do Algarve. São fáceis de fazer e colocam à prova a nossa criatividade na modelação das suas formas que podem ser as mais diversas.

Junta-se amêndoa ralada e açúcar em proporções iguais e amassa-se com clara de ovo até obter uma pasta moldável. Deixa-se em repouso por algum tempo (pode ser de um dia para o outro) e finalmente moldam-se as figurinhas que desejamos utilizando corantes de pastelaria para colorir a gosto as nossas doces peças artísticas: cenouras, laranjas, melancias, figos…

DOM RODRIGO

Outro incontornável doce desta região é o famoso Dom Rodrigo. Apresenta-se como uma surpresa tentadora, embrulhado em papel de prata colorido.

Para o confecionar precisamos de fios de ovos e de ovos-moles aos quais também pode ser acrescentado um pouco de miolo de amêndoa ralada. Fazem-se pequenas bolas de fios de ovos com uma pequena cavidade em que se coloca uma porção equivalente a uma colher de sopa de ovos-moles. Prepara-se uma calda de açúcar em ponto de fio na qual, enquanto ferve, se colocam os Dom Rodrigo para que alourem, ficando levemente tostados. Retiram-se do lume, deixam-se arrefecer, polvilham-se com açúcar e canela e envolvem-se em papel prateado.

MORGADINHO

Os morgadinhos, cobertos de açúcar glacé, também são bolos típicos da doçaria regional do Algarve.

Colocamos 250 g. de açúcar com um pouco de água ao lume e quando ferve, quase em ponto pérola, pegamos em 250 g. de amêndoa pelada e moída e juntamos. Deixamos ferver um pouco mais e retiramos do lume. Adicionamos duas gemas de ovo mexendo muito bem e trabalhando a massa. Fazemos então pequenas bolas em que deixamos um buraco no meio para rechear com chila, ovos-moles e fios de ovos. Tapamos o buraco com mais massa e vão ao forno médio, a alourar em tabuleiro untado com manteiga e polvilhado com farinha. Retiram-se do forno e deixam-se arrefecer para, finalmente, cobrir com glacé real. Deixa-se secar e já está.

QUEIJO DE FIGO

É um doce típico da primavera e consome-se tradicionalmente nos festejos do 1º de maio quando se sai para o campo em piqueniques. Isso não impede que se possa degustá-lo em qualquer altura do ano até porque se conserva durante muito tempo.

Precisamos de figos (250 g.) e amêndoas (250 g.) torrados e moídos separadamente. Precisamos também de levar ao lume um tacho com 1,5 dl de água, 250 g. de açúcar, 5 g. de canela, 1,5 g. de erva-doce, 25 g. de chocolate em pó e raspa de meio limão. Quando se formar ponto de estrada, juntamos a esta calda a amêndoa moída e mexemos sempre enquanto ferve por cinco minutos. Em seguida adicionamos o figo moído e procedemos de igual modo. Retiramos então a massa para uma tábua polvilhada com açúcar pilé e deixamos arrefecer. Depois de fria, moldamos os morgados.

CARRIÇOS

Os carriços são os suspiros algarvios. O que os distingue são as amêndoas laminadas e torradas que incorporam.

Três claras de ovo batidas em castelo com 250 g. de açúcar, a que se juntam as amêndoas laminadas, serão, com a ajuda de uma colher, distribuídas por forminhas de papel. Irão ao forno para cozer, por aproximadamente 20 minutos.

Mais simples não há. Mais doce, também não.

http://blog.turismodoalgarve.pt/…/cinco-doces-algarvios-irr…

 

Que mais somos

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Que mais somos
do que pó e desejo,
reflexo baço
dos sonhos por cumprir?

Hálito frio
dos dias derrotados
na luta
contra o esmeril do tempo
que nos gasta lentamente.

Que mais somos
do que este contentamento
feito de pequenas
e efémeras alegrias?

Rio manso e pleno
que desagua
em desespero
no estuário crispado
das mãos.

Miguel Afonso Andersen em "Tríptico de Vozes" (Pássaro Suspenso)

Fotografia -Minas de São Domingos por Vitor Pina Silva

De manhã, apanho as ervas do quintal

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De manhã, apanho as ervas do quintal.

A terra, ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

 

Nuno Judice

Fotografia de Pedro Cabeçadas

Lenda de Estoi


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Diz a tradição antiga,

Que é a voz do nosso Povo,
Que, ao rumor duma cantiga,
O que é velho é sempre novo.

Só por isso, eu vou narrar
O que alguém a mim contou,
Numa noite de luar
Que há muito tempo passou:

— Neste chão, aqui sagrado,
Nasceu, viveu e morreu,
Num outro tempo passado
A mulher que o nome deu

A esta aldeia tão linda,
Que por mim já foi cantada
Naquela trova que ainda
Por ninguém foi publicada.

Mas a moira, que era moira,
Antes de morrer, amou,
Porque sendo casadoira,
Seu pai a tal obrigou.

Isto dos pais terem mando,
Como tinham, nessas eras,
Sobre o amor tão doce e brando
Das filhas, se das esferas

Allah assim o mandava,
Não era o que mais convinha
Nem o que mais agradava
A tais perfis de andorinha,

Porque a moira era mulher
E tinha, assim, coração
Que não dava a um qualquer,
Moiro que fosse ou cristão.

Esta é pois a história triste
De Zhara, por ter amado,
Não alguém de alfange em riste,
Mas um valente soldado

Das duras hostes cristãs,
Que se batia, sem medo,
Pelas tardes e manhãs,
Naquela terra, em segredo.

Mas, quando a luta deixava
Ao seu corpo algum descanso,
Logo ali vinha e cantava,
Aprazível, tão de manso:

“Tu és Zhara, eu sou cristão,
“És mulher, eu homem sou,
“E o meu doce coração,
“Se o quiser’s, a ti o dou.

“Levas-me, com ele, a vida,
“O meu corpo, os meus tormentos,
“Mas tu serás, minha qu’rida,
“Dona dos meus pensamentos.

“E hás-de ser, sou eu que o juro,
“Minha Senhora e Rainha
“Do meu Povo, assim espero,
“Nessa terra que é só minha”.

E Zhara, então, apar’cia,
Ao alto brilhava a lua,
E docemente dizia:
“Vem ter comigo, sou tua.

“Depois que o sol dê três voltas,
“Ao redor daquele outeiro,
“Transporta-me, a rédeas soltas,
“Meu valente cavaleiro”.

Esperou El-Rei cristão,
— Porque de facto era Rei —,
Que o tempo passasse então
Mais depressa do que a Lei,

Que é tarda sempre a passar,
Em qualquer ocasião,
Porque ninguém quer esp’rar,
Quando julga ter razão.

Porém, foi chegado o dia
Que Zhara tinha marcado;
Cantava ali, de alegria,
Um canário apaixonado.

Por entre as urzes dos montes,
Caminhava a moira linda,
E sorria para as fontes
Como o não fez ainda

Outra mulher, depois dela,
Que até a lua sorria
Naquela noite tão bela,
Invejando a luz do dia.

No cimo daquele outeiro
El-Rei ao Senhor rezava,
Porque o seu amor primeiro
Não apar’cia e tardava.

Mas, na volta dum caminho,
Branca, qual aparição,
Vestida toda de arminho,
Zhara se mostrou então.

Mas não deu um passo mais,
Porque Allah, um deus remoto,
Mandou chuvas, temporais,
E, depois, um terramoto.

Tudo foi posto por terra,
Tudo ali foi arrasado;
Só não acabou a guerra
Que um pouco tinha parado.

Continuaram dirimindo
Moiros e gentes cristãs,
À dura luta sorrindo,
Dia e noite e pias manhãs.

Mas se a batalha parava,
Por pouco tempo que fosse,
Quem o quisesse escutava
Um falar assim tão doce:

— Mulher que p’ra sempre amei,
“Indif’rente à dor e aos ais,
“Eu te busco e buscarei,
“Moira Zhara aonde estais?”

E perto, do fundo chão,
Num cicio claro e quente,
Alguém respondia, então,
Docemente, docemente:

— “A luz nos deram por finda,
‘P’ra que foi e porque foi?
“Mas, se tu me vês ainda,
‘Aqui ‘stoy, aqui estoy...”

A fala se repetiu,
Longo tempo, longos anos;
E de tal modo se ouviu,
Sem mais letras, nem enganos,

Que o Povo deu de chamar,
Como benção redentora,
A este mártir lugar,
ESTOI, pelo tempo fora...

Fonte Biblio LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.81-86

Fotografia

 

de Estoi por Isaura Almeida