Se é clara a luz desta vermelha margem é porque dela se ergue uma figura nua e o silêncio é recente e todavia antigo enquanto se penteia na sombra da folhagem. Que longe é ver tão perto o centro da frescura
e as linhas calmas e as brisas sossegadas! O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço que no umbigo principia e fulge em transparência. Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo que em espiral circula ao ritmo da origem.
Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa. O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar. Quase dorme no suave clamor e se dissipa e nasce do esquecimento como um sopro indivisível.
Meus poemas são gaivotas Que partem p'ró infinito... Em terra soltam o grito Vão para terras remotas Nessas paragens ignotas Elas vagueiam no espaço Anseiam por outras rotas Onde não lhe dão abraço Gaivotas! Voam ligeiras Sois breves mensageiras Para além do mar distante! E quando à Terra regressam Dão uma nota diferente... Mensagens de além mar... No espaço de voar... Gaivotas à beira mar Dessas paragens remotas Que esqueceram as rotas!
Meus poemas são gaivotas No espaço de voar Tão voláteis como elas Descrevem rotas mais belas... Hão-de sempre regressar!
Livre não sou, que nem a própria vida Mo consente. Mas a minha aguerrida Teimosia É quebrar dia a dia Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino. E vão lá desdizer o sonho do menino Que se afogou e flutua Entre nenúfares de serenidade Depois de ter a lua!
Pátria pequena, deixa-me dormir, Um momento que seja, No teu leito maior, térrea planura Onde cabe o meu corpo e o meu tormento. Nesta larga brancura De restolhos, de cal e solidão, E ao lado do sereno sofrimento Dum sobreiro a sangrar, Pode, talvez, um pobre coração Bater e ao mesmo tempo descansar...
Peço a paz e o silêncio A paz dos frutos e a música de suas sementes abertas ao vento
Peço a paz e meus pulsos traçam na chuva um rosto e um pão
Peço a paz silenciosamente a paz a madrugada em cada ovo aberto aos passos leves da morte
A paz peço a paz apenas o repouso da luta no barro das mãos uma língua sensível ao sabor do vinho a paz clara a paz quotidiana dos atos que nos cobrem de lama e sol
Enquanto nos teus olhos encontrar O verde das searas A imensidão do mar E essa explosão de estrelas que brilha no luar. . Enquanto o sol brincar no teu sorriso E o dia amanhecer Doce, brilhante e quente . Enquanto tudo isso acontecer Eu vou viver… Eternamente!
Estou de partida E eu, aventureira, Que desejo tanto esta evasão De repente… Paro e sou, somente, Dúvida, medo, hesitação. A terra inteira Se estende à minha frente ! Sonhei partir, Em louca cavalgada, Com destino marcado no Oriente, Peregrina fiel numa cruzada. Sonhei partir um dia, Erguer bandeiras, Esvoaçar estandartes E, no meio de hinos de alegria, Sulcar os mares em caravelas, Tendo-te à minha espera, em cada porto, Com um braçado de estrelas. Sonhei… sonhei… Tanto sonho morto ! Fui monja, poeta, Fui rainha, Qualquer coisa, enfim… Só nunca fui Eu, sozinha, Dentro de mim !
Ofélia Bomba, em "Poemas do rato morto", 1993 (Boliqueime, Loulé)